terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

MALDITA MORTE

BENDITA LITERATURA
Depois de quase meio século de leituras, o que posso esperar de um livro? No mínimo que "o inesperado faça uma surpresa". E caso você seja daqueles que percebe em tal expectativa doses de ingenuidade, fico aqui a lamentar o seu equívoco.
O inesperado tanto pode estar ao lado como distante, muito distante. Encontrá-lo vai depender do talento dos editores que no mais das vezes optam pela comodidade da compra dos best-sellers d’além mar. Exemplo: perceberam que de uns tempos pra cá o fato de escritor tal ser português já é o bastante para merecer status de "grande?" Mas aqui na minha biblioteca essa banda não toca, mas não toca mesmo! E pelo visto também não toca pros lados da Bertrand Brasil, editora que corre na contra-mão da mesmice e com conhecimento de causa, ela publica Camilo José Cela, voltou seu olhar para a Espanha e de lá trouxe o surpreendente "Maldita Morte", de Fernando Royuela .
O inesperado em Maldita Morte surge na primeira frase, não há o menor desperdício nesse livro indispensável àqueles que ainda acreditam na literatura de qualidade e na necessidade que o homem tem de se emocionar. Parece exagero? Calma, tem mais, muito mais e se muito também aqui não direi é pensando em vocês, futuros leitores do livro, pois não quero privá-los das agradáveis surpresas que me assaltaram durante a leitura. Adianto apenas que o desfecho é obra de gênio. Duvido que vocês, chegando ao ponto final, não se sintam estimulados a recomeçar a leitura dessa grande obra literária.
O anão Gregório (também atende por Goyo, Goyto ou Gregori) é o protagonista, anfitrião e narrador. Ele acaba de receber uma visita em seus derradeiros dias. Goyo divide algumas semelhanças com o Jean-Baptiste Grenouille, desafortunado personagem principal de O Perfume, do alemão Patrick Suskind, aqui ressalto apenas a fascinação pelos perfumes, o fato de serem desprezados pelas respectivas mães e se Grenouille não tem cheiro, Goyo não passa de um anão deformado.
Antes porém de entrarmos na história propriamente dita, permita, caro leitor, breve exposição sobre o que caracteriza uma grande obra literária.
Ela obrigatoriamente precisa ser única, e, no caso, sequer a tradução a despoja dessa característica, outro aspecto é a capacidade de permitir um número incalculável de leituras, o que no entender de Umberto Eco a torna "aberta".
Dito isso voltemos ao anão Gregório que cresceu (aqui mera força de expressão) vítima da maldade, do escárnio e da brutalidade, inclusive de seu irmão, Tranquilino, enquanto este viveu, "Um trem de carga levou-lhe pela frente a primogenitura". Sua mãe acumulava funções em nome da sobrevivência e uma delas era a de prostituta. Como desgraça pouca é bobagem e provando que até o amor materno guarda lá suas limitações, Gregório acaba vendido ao dono de um circo que cumpria temporada na cidade. É justamente no circo que o anão gasta sua juventude expondo a bizarrice de sua condição em troca da mera garantia de sobrevivência. O circo também pode ser encarado como a metáfora da alienação que emana do capitalismo revelando o labirinto sombrio da sociedade, cada vez mais, de consumo.
Maldita Morte é o que se pode considerar um romance pós-moderno onde as fronteiras da ficção e História ( a história recente da Espanha) são apagadas em nome de uma evolução ou superação do alcance da linguagem. Parece simples? Podem crer, não é. É necessário que de tal amálgama resulte uma totalidade forte e sensível o bastante, a ponto de ensejar a reflexão do leitor e que a união dialética entre o que se passa no seu âmago e o que reside fora do homem, não seja desprezada. Para tanto Fernando Royuela convocou um exército de personagens incomuns, complexos, capazes de desfiar humor e drama na medida exata. Caso me fosse perguntado sobre o objeto do romance não teria a menor dúvida em apontar a vida e sua mais talentosa coadjuvante, a liberdade.
Maldita Morte é um romance desprovido de amor, o máximo que se pode identificar seria a sua intenção, no mais, eflúvios do desejo carnal e piedade. Sendo assim, podemos então identificar uma trama sombria? Ainda não, as doses de crueldade e contradições aproximam o enredo de uma realidade bem mais cínica e que, mesmo assim, teimamos em não considerá-la sombria.
Gregório está longe de ser ou parecer um herói, o máximo que consegue é granjear a comiseração do leitor, só do leitor porque ao longo da trama não lhe é destinada a menor migalha de amor ou mesmo solidariedade. Quando algo parecido com essa dependência recíproca aparece, não é nada mais que uma simples troca de favores onde o mais frágil sempre acaba perdendo.
Ciente de sua precariedade e de seus limites, Gregório não precisa determinar o sentido de sua vida, a seu ver ele já está traçado, no entanto, embora apenas verbalmente, o anão tenta ser um homem livre e faz do cinismo sua arma mortal.
Com ele na bagagem chega a Madri nos estertores do regime franquista e logo consegue a proteção de um chefe de gang de mendigos em troca da delação de comunistas. E é justamente investido na função de espião que Goyo encontrará aquela que lhe abrirá as portas da redenção, ou da liberdade como preferirem.
O anão é um personagem dos mais complexos e suas ações, nunca desprovidas de uma ambigüidade e de uma lógica particular, provocam no leitor reações de amor e repulsa como a lembrar que no íntimo, bem lá no fundo, somos todos quase iguais, embora alguns esbanjem talento e criatividade.
Para concluir,caro leitor, Maldita Morte é um dos melhores, senão o melhor, lançamento do ano e fiquemos na expectativa de que a Bertrand não tarde em lançar os títulos de Royuela ainda inéditos por essas plagas.
Como Gregório usa e abusa do cinismo para se defender, convém lembrar que estamos na época mais cínica do ano e na dúvida do que presentear, o faça com um exemplar desse livro que também vale por uma aula de teoria literária. Em se tratando de função poética da linguagem há muito que se aprender.
Confesso que foi difícil, mas se consegui me controlar até aqui não seria agora que revelaria o magistral desenlace dessa história que não tem fim.
Maldita Morte. Bendita Literatura!


TRECHO
"Ao longo da minha vida conheci uma infinidade de filhos-da-puta e a nenhum desejei uma morte ruim. Com você não vou fazer uma exceção. O ser humano perdura pelo mundo sem se dar conta da tragédia que o aguarda. Uns inventam deuses para remediar a angústia, outros, ao contrário, atendem ao imediatismo do prazer para afugentar o inevitável, mas todos no final são medidos pela rigorosa igualdade da extinção. Eu já estava advertido do fim, mas jamais pensei que fosse acontecer dessa maneira.
Sei a que veio, mas não importa. Nunca até agora tinha me enfrentado com a certeza de deixar de existir, e por isso sua presença, antes de me atemorizar, deprecia-me. Agora compreendo que minha existência tenha estado encaminhada desde o princípio para nosso encontro; que meus passos estivessem condenados até este instante, que não me fosse possível escapar ao meu destino por mais que pretendesse absurdamente, que ninguém, nem sequer os entes queridos, jamais irão chorar minha perda. Sei que você veio para se regozijar com o espetáculo de minha morte, constatei-o na ferrugem dos seus olhos, no limo de sua curiosidade, mas já não temo a inexistência."


TRECHO
"Merda de vida", exclamou o ex-presidiário quando terminou com o prato, "uns buscando um amo a quem servir sem pensar e outros em busca da liberdade para poder pensar e não servir". Aquelas palavras tiveram o efeito de sacudir minha inteligência como um choque de honradez e por elas me apercebi de que na espécie humana, embora totalmente inútil, podia haver também um fio de grandeza que transcendia a mera subsistência cotidiana; um desejo impossível por encontrar a localização da justiça e atém mesmo por praticá-la, uma vontade não cultivada de socorrer os semelhantes sob o lema de igualdade e fraternidade, que em virtude de complexos passes de mágica não desaguavam em proveito próprio. Acaba de descobrir o franciscanismo laico dos marxistas, um pensamento belo e impossível que logo haveria de mudar novamente o curso de minha existência e impulsioná-la, como se ainda fosse possível, pelos terrenos da demagogia, da farsa e do interesse."

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