sábado, 4 de abril de 2009

LONGE DAQUI

LONGE DAQUI

Paciente leitor. Quantas vezes você já se deparou com a história de personagem que empreende determinada jornada, pouco importa o motivo, e nessa caminhada encontra uma miríade de tipos esquisitos, exóticos, estranhos, bizarros? Quantas? Tudo isso! Não, cinema não vale, fiquemos apenas com a literatura. Pois é, mesmo assim é uma fartura e tanto.
Longe daqui, livro da americana Amy Bloom, grosso modo, é isso. Ao examinarmos detidamente duvido que você, criterioso leitor, não chegue a essa mesma conclusão.
Cenário: Estados Unidos, década de 1920.
Trama:Lilian Leyb, abandona a Rússia depois de ver sua família-pai, marido e filha- massacrada. Parte em direção a América, de onde sempre lhe chegaram histórias livres de miséria, desembarca em Nova York e percebe que a realidade não tem muito a ver com o que escutara. O paraíso ainda estava um pouco além. Afora as dificuldades para conseguir emprego decente e os obstáculos da estranheza da língua, Lilian era constantemente atormentada pelas lembranças da filha Sophie. Até o dia em que recebe a visita da prima Raisele trazendo a notícia que sua filha não está morta. Fora salva por um casal vizinho e levada para a Sibéria. Lilian decidi partir ao encontro de Sophie. Reencontra a realidade de sofrimentos, com a qual já tinha considerável intimidade.
O paraíso mudara de endereço, Sibéria.
Antes de iniciar a viagem de volta Lilian passa por situações trágicas, patéticas,engraçadas, experimenta de tudo. Tais episódios são na verdade protagonizados pelos coadjuvantes que no transcorrer da trama invertem os papéis e o leitor, avesso a monotonia, aguarda a aparição dos personagens “esquisitos” que manterão o insistente Morpheu longe de sua poltrona, persistente leitor.
A cena inicial lembra o início de um sem números de filmes de faroeste onde malfeitores atacam a propriedade, o rancho, de pacato cidadão, antes de matar sua mulher e filha, abusam sexualmente de ambas, em seguida queimam tudo. Quando o homem retorna, geralmente ele está consertando uma cerca, se depara com a desgraceira. Pronto; nasce um justiceiro. Sai então à caça dos facínoras.
Pois bem, cinéfilo leitor, Longe daqui é o mais puro de já-vu, literário, cinematográfico, o que preferirem.
Trata-se de uma singela literatura popular e não há nada de nobre nisso, nós que costumamos massacrar Paulo Coelho, devíamos prestar a devida atenção ao que nos chega de além oceano.“E perdida ali, uma pena dourada numa terra muito, muito estrangeira. Sempre foi assim: os melhores grupos são constituídos por pessoas cheias de problemas.” Você acabou de ler a abertura de Longe daqui. Pena dourada!!!!!!!! Nem nosso mago mor alcançou tamanho requinte. Além de não acrescentar a mais módica pitada de consistência ao nosso panorama literário ainda impedem a edição de autores tupiniquins. É de chorar.
Mas não desanime, caro leitor, pegue seu exemplar e continue em busca de argumentos que “me derrubem.” Tentarei dar uma mão.
Voltando à trama. Lilian chega a Nova York, traz algumas frases decoradas, em inglês, que utiliza conforme a situação. “Muito bem, obrigada”, em caso de a pergunta contemplar sua saúde. Ao perceber na indagação as palavras costurar, traje ou trabalho; a resposta memorizada será “Sou costureira -meu pai era alfaiate”. Em situações onde não entenda o questionamento apelar para “Freqüento a escola à noite.”
Sem muito esforço, Lilian consegue a vaga.Passa a trabalhar como costureira num pequeno teatro. Acaba se envolvendo com o ator principal da companhia, Meyer Burstein.O rapaz, no entanto, se amarra em rapazes e costuma freqüentar ambientes pouco recomendáveis onde deixa fluir seus anseios homossexuais; “buracos” entre bancos e arbustos de parques são os cenários preferidos. Lilian também divide sua cama com o pai de Meyer, o senhor Reuben.
Mas permitam voltar à fila do emprego, antes de Lilian conseguir o trabalho de costureira.
A autora descreve o ambiente e uma gama de personagens “estranhos” que se você, detalhista leitor, antever um circo não se condene. Lilian sorri para umas crianças e ao passar pelas mulheres que as acompanham sente que “elas fedem a azar.”
A seguir, de enrubescer o nosso mago. “Lilian tem sorte.Foi o que seu pai lhe disse; disse isso a todo mundo, depois que ela caiu no Pripiat duas vezes e não se afogou nem morreu de pneumonia. Disse que ser inteligente era bom (e Lilian era inteligente, afirmou ele), que ser bonita era útil (e Lilian era bastante bonita), mas ter sorte era melhor do que as duas coisas juntas. Esperava que ela tivesse sorte a vida inteira, e ela vinha tendo, até então. Ele também disse, você cria a sua própria sorte, e Lilian pega a mão de Judith, a única moça que conhece, abre caminho bem no meio da multidão e vai até a frente.”
Não estou a defender Paulo Coelho, mas a vilania deve ser devidamente fatiada.
Pois bem, enquanto o tempo de Lílian é dividido entre máquinas de costura e a cama que a acolhe os Burstein, ora o papai, ora o filho; e alguns pesadelos com a filha Sophie.
Transcorria nessa toada a vida da “sortuda” Lilian até que um belo dia, sem avisar, sua prima Raisele aparece trazendo a noticia de que Sophie vive.
Amy Bloom carrega a mão na descrição, a mesma mão pesada preenche com tintas graves os contornos do sentimentalismo; não bastasse o fato de colocar o leitor diante de uma mãe em desesperado ir e vir, num primeiro momento a procura de um sentido para refazer sua vida e a na seqüência a partida na tentativa de reencontrar a filha.
Pai e filho não dão a mínima importância a sua decisão, apenas Yaakov Shimmelman, ator e dramaturgo que acumula a função de alfaiate lhe concede ajuda. Ela costureira, ele alfaiate, se unem, costuram, psicanalistas, o prato está cheio.
Frase de Yaakov, sua mulher e seus filhos estão mortos: “- Antes - diz ele -, quando estava vivo, eu era um idiota.Agora sou o belo cadáver.Sou o cadáver que valsa.Você sabe.”
Ajudar Lilian será a última boa ação de Yaakov. “Depois que ela parte, ele pára de cantar no Royale, pára de cantar de implicar com Reuben, pára de debochar de Meyer. O cansaço de Reuben é o seu próprio, as mentiras de Meyer são as suas próprias, os crimes e os erros de julgamento do mundo são os seus próprios também. Ele estende toalhas na beirada da banheira, para o caso de espalhar água. Empurra a poltrona pesada , imprensando-a contra a porta da frente.Entra na banheira quente, tudo arrumado no tapete ao seu lado, e desta vez não há Reuben algum para pescá-lo dali.”
Atento leitor, está lembrado que falei de certos coadjuvantes que roubavam a cena?
Desse modo, sempre com bastante espaço ao melodrama, Lilian vai de trem até Chicago, com direito ao mundo cão de Seattle até alcançar o Alasca. Percebe-se a partir desse momento resquícios de tensão psicológica nesse vaudeville travestido de drama. Mas não se entusiasme, desgraças outras virão à tona, Amy exagera, torna a viagem de Lilian um pesadelo para o leitor. Recomenda-se não ler em viagens aéreas, aqueles saquinhos plásticos não darão conta do enjôo causado.
E Sophie ( que jamais saberá que foi adotada que sempre vai se lembrar de Lilian como a prima sorridente de cabelos escuros que lhe deu um cachecol de lã azul)estava lá.
Sophie é o coração da vida de Rivka Pinsky; ela é a jóia de sua mãe, escondida e imerecida.Cresce como Tatiana Bugayenko, uma atéia, uma Pioneira Vermelha.....
Paciente leitor, você tem em mãos Longe daqui uma salada russa temperada com homossexualismo, desgraça, judaísmo, ateísmo, perseverança, uma personalidade opaca, sonhos, pesadelos. Decida-se pelo tema, ande até sua estante, escolha um outro livro.
Aproveite seu tempo.




TRECHO
TODOS OS PECADOS COMEÇAM COM O MEDO, e Raisele está doente de medo; talvez tenha errado os cálculos, sua esplêndida aventura talvez termine antes mesmo de começar, talvez acabe apenas com uma fração daquilo que veio buscar. Raisele cai de joelhos, puxando para si a mão livre de Lilian.
-Sophie está viva - diz Raisele. - Ela está viva.
E depois desmaia.
Lilian põe Raisele na cama e esvazia a banheira.Não importa que Meyer ou Reuben venham esta noite, ou quando, ou qual dos dois, ou se vierem ao mesmo tempo, cara ou coroa, podem tê-la aos turnos no chão da cozinha.
Lilian se deita na cama ao lado de Raisele, que jogou a camisola no chão e dorme nua, enroscada do seu lado, os braços cruzados sobre o peito. Está quente como um forno. Lilian respira fundo para se acalmar, e sente o cheiro de sua mãe ao seu lado, suor e cebolas verdes e o odor queimado, lembrando nozes, de grãos de trigo sarraceno sendo jogado de um lado a outro da frigideira num arco marrom perfeito e indiferente. A cama subitamente se enche dos mortos de Lilian, e Raisele rola para o meio deles, e coloca as mãos nos ombros de Lilian. Diz em seu iídiche leve e ceceado, “Devo contar?” e conta, sem esperar.
Em sua maioria, as famílias fugiram para oeste, à exceção dos Pinsky. Os Pinsky cortaram caminho pelo quintal dos Krimberg, encaminhando-se para a estrada a leste (o que Raisele não diz é que deviam estar procurando por qualquer coisa que pudesse ter sido deixada para trás, procurando levar da casa de seus vizinhos quaisquer sobras que as outras pessoas não tivessem podido carregar). Encontraram um pequeno monte enlameado perto da casa de Lilian, junto aos degraus do galinheiro. O monte era Sophie, sangue e sujeira na barra da camisola, os pés salpicados de cascalho, e Mrs. Pinsky, que tinha enterrado três bebês, disse a Mr. Pinsky que os Leyb estavam todos mortos, que eles tinham que levar a criança consigo para a Sibéria e que não ia ouvir uma negativa. Kachikov, o policial, me contou tudo isso, diz Raisele.
AUTORA
Amy Boom é autora de dois romances e dois livros de contos. Foi indicada ao National Book Award e ao National Book Critic Award e teve contos publicados em diversas antologias. Colaborou com revistas como a New York Times Magazine e a Atlantic Monthly,entre outras. Vive em Connecticut e leciona na Universidade de Yale.

domingo, 15 de março de 2009

CARTA A D

CARTA A D.

“Se eu morrer agora, você retornará ao Rio de Janeiro?” Mal tínhamos acordado e minha mulher, após um beijo, traz à tona essa questão. Como se trata de uma quase filósofa e a morte é a grande inspiradora da filosofia a princípio tomei aquela indagação como provocação, ela sabe o estrago que me faz falar e pensar na morte, e também uma tentativa de filosofar. A questão precisava ser quase simplória devido às limitações do seu patético interlocutor. Fosse o que fosse, não teve êxito. O medo que o tema me causa, o medo da morte é inato, empurrou minhas mãos trêmulas ao controle remoto e logo liguei a TV em busca de uma bobagem qualquer.
Ela não insistiu e eu num silêncio/trincheira inventado naquele instante lembrava do melancólico livro Carta a D., que tínhamos lido e debatido semanas antes, sob coincidentes emoções.
A morte não combina com nada, e quando confrontada com o amor a incompatibilidade se torna insuperável, por ter experimentado de ambos meus medos se redobravam, Depois da pergunta de minha mulher me perseguiu por horas e horas uma frase de Carta a D.“Nós desejaríamos não sobreviver um a morte do outro.”
Impactado com a frase conclui que deve ser essa a única maneira de um amor durar para sempre. Amor ou vontade de vida, conforme Schopenhauer.
Mas “como construir esse para sempre?” Partindo da certeza do meu amor por minha mulher e das sensações incomparáveis que ela me causa, se tornava óbvio objetivar a continuidade do prazer.Sei que no frigir dos ovos somos todos egoístas e tudo que buscamos é com a intenção de que seja para sempre. Que o automóvel não enferruje, que o vaso jamais quebre, que as fotografias nunca se apaguem e aqueles que amamos estejam sempre a nossa disposição. Poucos admitem, mas a verdade é essa. Esse mundo não me interessa,o mundo da razão, razão que nos presenteou com a certeza da morte, me desagrada completamente. Por outro lado, me fascina o mundo da minha imaginação. Sua existência depende de mim, se tenho os planos é por que a construção é viável. Meu objetivo é trapacear, enganar a morte, desviá-la daqueles que eu quero bem, que na verdade guardam pedaços meus e caso morram, eu também morro. Se a fantasia não me impediu de sofrer pelo menos me fez entender que algumas coisas podem ser para sempre. E só pode ser pra sempre tudo aquilo que não exigir espaço. Mas o para sempre é algo que não surge livre da dor. Falo de meu grande amor que foi precedido da minha dor e solidão frutos ácidos da autodepreciação e preguiça de acreditar na fantasia. A solidão é um artifício muito utilizado pelos covardes da minha laia. Nos escondemos, congelamos nossa afetividade e se não amamos não corremos o risco da rejeição, da perda, da frustração. E assim permitimos o tempo andar sobre nós. Até um dia... O dia em que percebemos que podemos permanecer assim para sempre. Sem dor, sem medo, imóveis. Como as pedras. A pedra escondida é a materialização do para sempre, pior, muito pior que estátua. Minha fantasia exigia movimento e eu não sabia, talvez por isso me doesse tanto estar parado. Pouco importando se frente ao mar ou deserto.
Porém, em certo entardecer meu mundo começou a rodar no sentido oposto. Naquele instante eu vi a mulher que também me viu. Alguns dias se sucederam até revê-la e então trocamos algumas palavras, o suficiente para eu me dar conta que desde minha infância sonhava com uma mulher como aquela. Hoje o sonho é também meu despertar e quando sofro é simplesmente por que ela não está comigo. E como sofro!!!! Infelizmente o amor nunca é para sempre, visto que é vivo e tudo que é vivo precisa morrer. Não eu não invejo o amor de Dorine e André, mesmo que o amor deles tenha durado para sempre. Agora eu tenho a receita e posso responder a minha mulher: “Não, quando você morrer não voltarei ao Rio de Janeiro.Não irei a lugar algum. Pregarei na porta de nossa casa placa igual a de Gorz; Avisem a polícia” É isso. Não eu não tenho 17 anos, tenho muito mais e não acredito em nada, nada mesmo que não seja produto da fantasia, do imaginado, do sonhado. Mas acreditar não basta é preciso viver a realidade com fantasia.
Amor ou vontade de vida. Em setembro de 2007 Dorine e Gorz suicidaram-se, cada um com sua respectiva injeção letal, a doença dela (aracnoidite) atrapalhava a vontade de vida do casal. Viveram juntos quase sessenta anos. Dorine sofria há vários anos de uma doença incurável, fruto de um erro médico - “você vai eliminar esse produto em dez dias” , anunciou o radiologista.Enganava-se, o líquido(lipiodol), utilizado para fazer contraste numa radiografia de coluna, alcançou o cérebro , Dorine sofria dores terríveis.
Carta a D., escrito entre março e junho de 2006 com Dorine já doente, é uma carta de amor, é uma história de amor, é uma história sobre os sobre-saltos do viver? É uma história sobre a literatura, sobre o silêncio? É tudo isso e mais: é também o mea-culpa, pedido de perdão, remorso de Gorz . Logo na abertura ele confessa: “Eu só preciso lhe dizer de novo essas coisas simples antes de abordar questões que, não faz muito tempo têm me atormentado. Por que você está tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida? Por que, em Le Traîte, passei uma falsa imagem de você, que a desfigura? Esse livro deveria mostrar que a minha relação com você foi a reviravolta decisiva que me permitiu desejar viver. Por que, então, deixar de fora essa maravilhosa história de amor que nós tínhamos começado a viver sete anos antes?
Em Le Traîte chega ao requinte de chamá-la de “coitadinha.“Tem mais; Carta a D. também é o relato de uma tragédia provocada por um erro médico, enquanto isso a vida segue abusando das repetições, André e Dorine não suportaram, não importa se para os gatos ou para os médicos, ambos escondendo suas cagadas embaixo da terra. Falo com conhecimento de causa, já me pegaram duas vezes, fizeram uma vítima fatal. Carta a D. é uma pergunta; a pergunta que incomodava Gorz: “por que amamos e queremos ser amados por determinada pessoa e excluímos as demais?” A pergunta continua a espera da resposta.
Gorz entendia que a filosofia não servia para explicar o amor. Abrir parênteses: quem leu Metafísica do Amor, de Schopenhauer, sabe que Gorz está com a razão. Fechar parênteses. O amor é o deslumbramento de uma pessoa pela outra, pelo que elas vêem e sentem de mais inexplicável.Amor implica em união, Dorine dizia: “Nós seremos o que fizermos juntos.”
Gorz precisava de Dorine, me atenho a ele porque a carta é escrita por ele, deduzo que a recíproca tenha sido verdadeira. Dorine duvidava da aplicabilidade das teorias de Gorz, mas não negava-lhe o apoio fundamental. “Amar um escritor é amar que ele escreva , dizia você. “Então escreva!.” Gorz rebate: “Eu não posso me imaginar escrevendo se você não mais existir.” Não, sensível leitor, não se trata de auto-ajuda, é triste, é demasiado humano, pena que o humano ande tão fora de moda e o amor atualmente seja tratado como animal em extinção. Eu disse amor, note bem. Não confundir com atração física tão somente ou certos jogos de interesses que todos conhecemos muito bem e não saem da ordem do dia.
O autor André Gorz, filósofo e jornalista(Les Temps Modernes e Le Nouvel Observateur) sofreu influência de Karl Marx e Jean Paul Sartre. O leitor atento pode confirmar com a leitura de “Estratégia Operária e Neocapitalismo”, “O Socialismo Dificil”, “Critica da Divisão do Trabalho” e “Adeus ao Proletariado”. Filósofo importante, fez da ecologia um dos seus temas favoritos junto com o anticapitalismo que em dados momentos nos faz lembrar Theodor W. Adorno em suas criticas radicais à cultura atual onde o humano é preterido em nome de uma neo barbárie. Dorine,inglesa, nascida Doreen Leir era uma atriz de teatro. Se encontraram na Suiça, dois anos depois estavam morando juntos.
Dorine e André inventaram um amor e um mundo ; o amor ainda hoje mantém contato com a realidade atual; o mundo de combate a doença no entanto e de alerta aos inevitáveis erros médicos não pode ser esquecido. Dorine e André já estavam mortos antes de suicidarem-se, o ato físico foi tão somente o ápice de uma morte espiritual que se deu com o avanço da doença de Dorine. André, porém, se manteve vigilante: “Estou atento à sua presença como estive desde o início, e gostaria de fazê-la sentir isso. Você me deu toda a sua vida e tudo de si; e eu gostaria de poder lhe dar tudo de mim durante o tempo que nos resta.”
Em Carta a D. André Gorz combina amor e sofrimento na medida exata, embora intensos, no entanto este resenhista ranheta não faz pouco caso das intenções do autor, discorda apenas do momento escolhido para tão significativa declaração. Bem, mas o suicídio dele foi a grande declaração de amor, você deve estar pensando, amoroso leitor. Para não me tornar ainda mais chato prefiro encarar Carta a D. como a última declaração de amor, nesse caso presumo a existência de inúmeras outras,próprias dos grandes amores.
Gorz contraria Adorno, em Carta a D. o autor não desaparece na obra.





O AUTOR
André Gorz (Viena,1923 - Vosnon,2007), pseudônimo de Gerhard Horst, é autor de uma das reflexões mais importantes sobre o capitalismo e o mundo do trabalho no século XX. Com livros publicados em diversos países, foi um pioneiro na defesa da militância ecológica como uma política, tanto em sua obra teórica como eu seu trabalho na imprensa. Dedicou os últimos anos de vida a cuidar da doença da mulher, Dorine, período em que publicou uma série de ensaios de grande relevância, a começar por Adeus proletariado (1980) que marca o rompimento com o marxismo.

TRECHO
Vinte e três anos se passaram desde que fomos viver no campo. A princípio na “sua” casa, que liberava uma energia meditativa.Nós a saboreamos por apenas três anos. O canteiro de obras de uma central nuclear nos enxotou dela. Encontramos outra casa, bastante antiga, fresca no verão, quente no inverno, com um terreno enorme. Você poderia ter sido feliz ali, onde não havia nada além de uma campina, que você transformou num jardim de sebes e arbustos. Plantei duzentas árvores. Durante alguns anos, ainda viajamos um pouco, mas as vibrações e os solavancos dos meios de transporte, fossem quais fossem, causavam-lhe dores de cabeça e em todo o corpo. A aracnoidite a obrigou a abandonar, pouco a pouco, a maioria das suas atividades favoritas. Você consegue esconder os sofrimentos; nossos amigos sempre a acham “em plena forma”. Você não parou de me encorajar a escrever. Ao longo dos vinte e três anos passados na nossa casa, publiquei seis livros e centenas de artigos e entrevistas.Nós recebemos dezenas de visitantes vindos de todos os continentes, fui entrevistado dezenas de vezes. Eu certamente não estive à altura da resolução que tinha tomado havia trinta anos: a de viver o presente, atento mais que tudo à riqueza que é a nossa vida comum. Agora eu vivo de novo, e com um sentimento de urgência, os instantes em que tomei essa resolução. Não tenho nenhuma obra mais importante em elaboração. Não quero mais - segundo a fórmula de Georges Bataille - “deixar a existência para mais tarde”. Estou atento à sua presença como estive desde o início, e gostaria de fazê-la sentir isso. Você me deu toda sua vida e tudo de si; e eu gostaria de poder lhe dar tudo de mim durante o tempo que nos resta.

RUA DOS ARTISTAS E TRANSVERSAIS

RUA DOS ARTISTAS E TRANSVERSAIS

A crônica é o gênero mais desprezado,embora o mais lido pelo grande público, talvez por ser tão fugaz o que não é uma justificativa das mais fundamentadas pois o orgasmo também é algo bem mais que fugaz e até minha avó ainda gosta, faz questão e respeita. Mas o que faz da crônica algo tão passageiro? Talvez o fato de ela abandonar seu meio ambiente, o jornal, e se aventurar em terreno movediço, o livro.
Mas transferir a crônica das páginas tão efêmeras dos jornais para as páginas dos livros é tarefa que Martha Medeiros, Zuenir Ventura, Luis Fernando Veríssimo, Jorge Coli, Moacyr Scliar e mais três ou quatro executam de olhos fechados . A crônica também permite a infestação de outros tipos nem sempre habitués das letras, tais como publicitários,padres, ex jogadores de futebol, vôlei et caterva. Dizem o que todo mundo diz, algumas vezes conseguem inclusive ser mais bestas que a horda semi letrada. A regra é essa:construa seu nome com mármore numa outra profissão e depois publique um livro de crônicas. Ao editor interessa saber se você é conhecido, pelo menos na sua aldeia, se escreve bem é um detalhe que virá a tona no final do processo.
Mas quem leu Rubem Braga não lê gato por lebre e juntando-se aos citados anteriormente, é bom não esquecer de Fausto Wolff atualmente no Jornal do Brasil, em sua luta incansável contra as injustiças e a favor dos humildes. A lamentar o fato de Fausto ser único, nosso grande e respeitável Quixote.Meus respeitos e minha admiração.
Com os mesmos compromissos de Fausto porém recheando-os com o mais fino e permanente humor temos aquele que atualmente, no entender deste aprendiz pelo menos, é o nosso maior cronista, Aldir Blanc. Onde você leu "atualmente" pode incluir a obra do Nelson Rodrigues cronista.
Dele a editora Agir acaba de publicar Rua dos Artistas e Transversais, reunião de crônicas escritas para o Pasquim, revista Viaje Bem, entre 1975 e 1981, mais tarde publicadas em Rua dos Artistas e arredores ( Codecri, 1978) e Porto de tinturaria (Codecri,1981). Inclui também textos,inéditos em livro,publicados na revista Bundas de junho de 1999 a novembro de 2000 e no Jornal do Brasil em 2005 e 2006.
Um livro, vou adiantar, que não se resigna às palavras, um livro que luta contra as desigualdades, as futilidades, o mau humor, o falso moralismo, um livro onde não há realismo e sim realidade. Acharam muito? Então leiam o dito cujo e verão o quanto sou moderado.
Feito o esclarecimento voltemos às crônicas do Aldir. Antes porém convém lembrar que estamos no país das injustiças, não fosse assim, a obra desse notável escritor, letrista incomparável estaria sendo estudada em nossas universidades e o Aldir disporia de menos tempo para cantar sua Rua dos Artistas visto que os compromissos da ordem das palestras, conferências, aulas e por que não programa inteligente de tv, o deixariam por demais ocupado e consequentemente viveríamos num país menos idiotizado.Eu lamento pelas nossas crianças expostas aos perigos dos livros didáticos, em sua grande maioria não passam de um furo na memória. Ou vocês têm conhecimento de algum livro didático que faça referência a obra de Aldir Blanc? Isso é apenas a ponta do iceberg da nossa mediocridade e descaso com a nossa cultura. Já nas crôncias de Aldir o que não falta é memória, mas não no sentido de lamentar os tempos idos, mas como um alerta para aproveitar o momento atual. Aldir não deixa Tzvetan Todorov mentir: "sacralizar a memória é uma outra maneira de torná-la estéril." E na Rua dos artistas tudo é vivo e se reproduz.
Pensando bem, arte e justiça, justiça na arte, arte na justiça, daria pano pra muitas mangas, que tal um debate?
Mas querer reconhecimento e justiça em nossa pátria já é ambicionar demais.
Tentativa número 2 de voltar às crônicas de Aldir, dessa vez eu consigo.
Paciente leitor, você deve estar se perguntando o que tem afinal esse Aldir para o Luíz Horácio se derramar tanto, serão amigos? Infelizmente não, embora já tenhamos nos encontrado algumas vezes em casa de Fausto Wolff. Então é isso, ele é amigo do amigo. Engano número 2.
Acontece que Aldir é um dos poucos cronistas que faz questão de ser original e consegue dedicando-se ás questões mais comezinhas de nossa comezinha existência. Para espanto dos Geraldos e dos Tomas (é seu, eu não quero) ele não faz drama tampouco graça com a desgraça do 11 de setembro novaiorquino, quando na sua rua acontecimentos envolvendo uma cartomante um bêbado estimulam a grande reflexão que devia perseguir a todo ser humano: a de aproveitar a vida da forma mais descontraida. Adianto aos apressados que estão à beira do engano número 3 se pensaram que dinheiro é fator indispensável para tanto. Nas crônicas de Aldir o dinheiro jamais merece o foco das atenções, seus personagens, mesmo os mais afeitos à uma sacanagem, são de uma inocência contagiante, deixando no leitor aquela vontade imensa de conhecê-los, de um dia ser convidado para uma feijoada ou até mesmo um "velório no catumbi".
Nas crônicas de Rua dos artistas podemos perceber a evolução do gênero, o abandono o exclusivo caráter jornalistico, as atenções voltadas aos fatos do dia- a -dia e a gradual ocupação do terreno da ficção sem jamais desviar o olhar, no caso do Aldir, da critica às relações humanas e nosso modus vivendi quotidiano onde o desejo (capitalismo) supera por vários corpos a solidariedade (socialismo).Convém sempre lembrar que segundo Galileu Galilei (1564-1642), nada que pode ser visto pelos olhos pode ser considerado uma inverdade.Sendo assim podemos dizer que as concepções, quer a respeito das limitações do Universo, quer a respeito das funções ou das ambições literárias bem como dos acontecimentos da Vila Isabel, Muda e Tijuca não podem ser desconsideradas, a cada um sua devida importância. Tanto tiveram que agora neste exato momento, humildemente; nos ocupamos dos ditos cujos.
Assim como a Literatura, podemos dizer que a ciência também é uma narrativa em evolução.
Sem salamaleques Aldir faz as apresentações de seus personagens, praticamente seus vizinhos,os descreve, não esconde suas idiossincrasias, seus vícios, suas deficiências e seus artifícios, os nobres e os nem tanto; e logo vai se criando uma intimidade entre eles e o leitor.
Alguns dos livros mais elogiados pelos coleguinhas são aqueles que apresentam as tais referências pops, mero eufemismo para não dizer atirar para tudo quanto é lado com a preocupação única de errar em todos. Mas é pós-moderno, sacaram?
Aldir Blanc, da sua rua dos artistas mostra como é que se faz: para dizer que a partir de um determinado ponto o território não era dos mais amistosos ele diz se tratar de "território sioux" e mais adiante citará Tantor, Mandrake, Fantasma,o espirito que anda e sua trupe, o universo das histórias em quadrinhos utilizados para clarear Vila Isabel e adjacências.
E para acentuar a tal intimidade entre leitor e personagem, Aldir estabelece um diálogo com o leitor, não são poucas as vezes em que interrompe a narrativa para falar com o leitor, pregar-lhe uma peça, dar um puxão de orelha ou até mesmo um esporro. No leitor e na leitora, em certos momentos ele se dirige à leitora.
Ler Aldir Blanc é acima de tudo compreender que a reflexão não é necessariamente da laia das coisas sizudas, muito pelo contrário,assim como o amor não é nada simples, o amor na verdade é um espetáculo; viver é saber dançar ao som da alegria, do senso critico e da ironia. Não basta estar vivo.
Aldir é um filósofo útil, é prático, seu objeto é a critica social, a condição humana e sua precariedade, Rua dos artistas e transversais é um dos mais importantes livros de nossa literatura. São 428 páginas onde não se percebe o menor desperdício ou excesso e olha que nem falei das orelhas de autoria do Fausto Wolff.Outro fator importante nas crônicas do Aldir é o fato de não percebermos nelas o ranço, o corrosivo hálito do tempo, mesmo naquelas mais antigas.O cronista, poeta, letrista lida com objeto perene,a vida e sua interminável renovação. Nós, somos apenas isso que ele tão bem retrata; personagens.As crônicas de Rua dos artistas me trazem à lembrança J.L.Borges: "as veces em las tardes una cara nos mira desde el fondo de un espejo: el arte debe ser como esse espejo que nos revela nuestra propria cara."
E se por acaso você for mais um desses que permitem que outras cabeças pensem por você, lamento mas é bom esquecer aquela máxima que também te empurraram goela abaixo, aquela que diz que o jornal depois de lido só serve para embrulhar o peixe. Esqueceram de dizer que antes se deve recortar a crônica do Aldir.
Agora se me dão licença, já entrei no táxi, o motorista está a beira de um torcicolo.
-Toca pra Vila Isabel
-Que altura dr.?
-Rua dos Artistas, aquele buteco na esquina, depois do centro espírita da Heronda. Marquei com o Belisário, com o Lindauro, dr.Waladão, a Deysinha me garantiu que também estará por lá,o Ceceu Rico, o Waldir Iapetec, o Paulo Amarelo e mais os vão sem avisar.
Se der sorte ainda encontro o Aldir. o avô Aguiar e o papagaio Plinio.Oque eles não sabem é que o Nelson Rodrigues ligou a pouco.Já está no local.

NOS PENHASCOS DE MÁRMORE

NOS PENHASCOS DE MÁRMORE
Vamos começar pelo aspecto imutável, Ernst Jünger foi militarista, apoiou , e não foi sem querer , a ascensão do nazismo, (participou da primeira e da segunda guerra mundial como militar e também tomou parte na ocupação de Paris pelos nazistas) mais tarde abraçaria um niilismo até certo ponto sofisticado. Importante lembrarmos sempre disso, não é o fato de escrever bem que o exime de culpa. Nazista regenerado talvez seja mais perigoso que nazista condenado. Não foi por acaso que no período em que Hitler esteve no poder quase todos escritores, atualmente de importância reconhecida, foram perseguidos. Exceto quem? Quem? Ernst Jünger.Não, ingênuo leitor, eu não entregaria meu cachorrinho para o Jünger dar uma volta com ele pelo quarteirão. Pois bem, Jünger é considerado gênio por muitos, de nós e dos outros. Andam lendo pouco, ou mal, o Graciliano Ramos, o Guimarães Rosa, o Erico Verissimo, o Campos de Carvalho, o Mário Araújo, por exemplo. E por falar em ingenuidade e genialidade, lembremos o que disse seu compatriota( dele Jünger) Schiler: "Todo gênio verdadeiro deve ser ingênuo. Somente sua ingenuidade o converte em gênio." É óbvio que a ingenuidade somente não faz um gênio, mas que o Jünger não tinha o menor traço de ingenuidade é indiscutível. Não desconheço o que disse Freud sobre a personalidade genial. Diz que o gênio vive sempre sob tensão e quando a tensão se torna exageradamente forte, quase insuportável, essa tensão migra para a obra. Entre vida e obra de Jünger percebo as contradições, e não consigo tomar partido a favor dos atenuantes. Se Nos penhascos de mármore é quase poesia, é quase fábula, é quase infanto-juvenil, é quase....Temos um menino que alimenta serpentes, ele bate no prato e elas se juntam a ele para beber leite, as mesmas serpentes se põem na vertical numa atitude pouco amistosa frente a inimigos. Como se pode notar, é quase infantil, mas certamente você, semiótico leitor, fará uma leitura extremamente culta do signo serpente e enviará para este tosco aprendiz o que isso quer dizer.Aguardo ansioso. Enfim, quase...
E como todo quase,não chega a impressionar.
Mas passemos a obra.
Nos penhascos de mármore é uma de suas novelas mais conhecidas e serve também de emblema da contradição que orientou sua vida. De soldado de Hitler à suspeita de um catolicismo dado às imagens que pululam nessa narrativa, Ernst Jünger é a confirmação da tese que afirma ser o homem a causa e o efeito de todas as tragédias da história e alimentar a ira nacionalista como uma virtude é um equívoco vergonhoso. Uma obra literária por melhor que seja não terá poderes para limpar tamanha mancha. Nos penhascos de mármore é uma bela novela, como tantas que tantos escritores brasileiros escreveram e escrevem, embora isso não seja pouco também não vamos classificá-la como algo na ordem das obras excepcionais.Longe disso. Caso o leitor atento não se disponha a fazer inúmeras analogias e forçar a barra na intenção de ver o nazismo aqui e ali, Nos penhascos de mármore poderá ser encarado como uma competente literatura infanto-juvenil, sem esquecer a gama de valores arquetípicos representados pela variedade de personagens que pululam pelo convento de Padre Lampros, sem esquecer as lições de botânica e um longo esclarecimento sobre o comportamento das víboras, sem esquecer a fantasia, o fantástico, o maravilhoso...
Mas falta algo....
O protagonista (anônimo) da novela vive junto com o irmão, Otho num país próspero onde reina a felicidade. Da localidade que habitam vislumbram Marina, um lugar onde natureza, arte e ciência convivem em harmonia. A difícil combinação ideal do amor com o conhecimento. Mas é sempre assim; se está tudo bem não tardará a entrar em cena o vilão. E nesse caso, vem da Mauritânia o cruel ditador (alguns dizem ser a representação de Hitler, mas pode ser qualquer exemplar do autoritarismo ) determinado a por um fim em tamanha felicidade e estabelecer seu reinado de violência. Como disse acima, muitos viram nisso uma denúncia do regime nazista. Se olharmos para o protagonista, um ser que transborda virtudes, sejam individuais, sejam coletivas; e creditarmos ao autor tais qualidades, ou admiração por tais aspectos, aí sim, com certa forçadinha de barra, pode-se dizer que se trata de uma demonstração de repúdio ao nazismo. Seguindo nessa linha temos um outro personagem, é praticamente dele o cap.14,um monge cristão, o padre Lampros, e ainda na esteira do pode-se dizer que tal afirmarmos que esse episódio representa o primeiro contato do autor com a igreja católica? E não foi dos mais amistosos como podemos ver no trecho que segue. " Quando nos aproximamos dele, fomos tomados por certa inquietação, pois a face e as mãos desse monge pareciam-nos insólitas e sinistrar.Se assim posso me expressar, elas pareciam pertencer a um cadáver, e era difícil acreditar que nelas circulassem o sangue e a vida.
O sombrio Padre Lampros,( ...Mas a alegria também não lhe era estranha) é a chave do enigma Nos penhascos de mármore. Padre Lampros é um personagem que diz mais com seus silêncios que com suas palavras, seja em questões corriqueiras seja no campo cientifico, onde é respeitadíssimo, sábio evita tomar partido em debates entre escolas de diferentes orientações. Lampros guardava seu passado a sete chaves, restava-lhe um anel onde se via a asa de um grifo e as palavras "tem motivo a minha paciência". Numa edição espanhola lida por este aprendiz há décadas lia-se "espero en paz", me agrada bem mais. Como diz o narrador daí se explicam duas características de Lampros; orgulho e modéstia. Defendia o princípio de que "cada teoria significava na história natural uma contribuição à gênese das coisas, porque em cada época o espírito humano conceberia a criação de uma nova maneira, e em cada interpretação não existiria mais verdade do que na folha de uma planta, a qual se desenvolve para logo fenecer." Por essa razão nomeou a si mesmo Filóbio, "o que vive nas folhas." Deixando à mostra, novamente, as duas características; orgulho e modéstia.
O padre vivia recluso em seu mosteiro,voltado aos estudos, às orações e a atenção aos peregrinos; mesmo assim do mundo tudo sabia, era querido e respeitado não só por católicos, mas por todos, inclusive aqueles que elegiam deuses outros. Quando o perigo se ensaiava não disfarçava certa alegria e regozijo. "Ele, que vivia como em sonho atrás dos muros do mosteiro, era talvez o único dentre nós que enxergava a realidade por inteiro."
Longe de ser egoísta chegava a descuidar da própria segurança, no entanto não negligenciava quando se tratava da tranqüilidade do seu povo.
Mas falta algo...
Aspecto que não pode ser esquecido é o tom fabular de Nos penhascos de mármore capaz de alinhá-lo entre os grandes títulos do gênero, fazer analogias inclusive Pedro e o Lobo, Chapéuzinho Vermelho e Bambi, permitem. Inclusive sobre Harry Potter há um estudo relacionando com o período e práticas nazistas. Como diz o meu papagaio; "neguinho delira, neguinho delira."
Continuando com Lampros, seu mosteiro, seu vasto conhecimento e bom senso, permitem ao leitor desconfiar de uma certa cumplicidade entre ele o autor. Percebem-se no monge os valores defendidos por Jünger como o conhecimento, orgulho, autocontrole e a defesa de certos princípios como o dito aqui anteriormente. Pairam suspeitas de que Lampros seja fruto de algum contato do autor com o catolicismo. E pelo visto agradou.
Dizem também que a vida só tem transcendência quando somos capazes de salvar-nos como homens. Não sei se Jünger chegou lá.
Mas falta algo...
O narrador é um ser estranho, enigmático. Não se pode dizer que seja alguém que tenha uma relação com o mundo que o rodeia que vá além da observação de supostas leis. Sua moral não é das mais claras, talvez a que suscita o momento. Ao leitor fica a desconfiança de estar diante de alguém que ama a aventura, no entanto vários medos o impedem de vive-la em sua totalidade. Falta-lhe uma dose de Dom Quixote.
Mas falta algo a Nos penhascos de mármore.
-O quê?
-Faltam duendes, castelos e fadas.



TRECHO
Quando estamos felizes, as mais modestas dádivas deste mundo satisfazem os nossos sentidos.Desde sempre eu venerei o reino vegetal e, em muitos anos de peregrinação, investiguei os seus prodígios.Era-me familiar o momento em que o coração palpita, ao se pressentirem os segredos que cada grão de semente abriga em seu desenvolvimento. Contudo, o esplendor do crescimento nunca me fora algo tão próximo quanto o era nesse chão que exalava um cheiro de verde há muito fenecido.
Antes de me deitar eu perambulava um instante no estreito corredor central. Naquelas meias-noites eu pensava amiúde que jamais observara as plantas tão reluzentes e admiráveis. Sentia de longe o aroma dos vales espinhosos e constelados de brancura, que na primavera eu fruíra na Arabia Deserta, e o cheiro de baunilha que refresca o caminhante no calor sem sombras dos bosques de araucárias. Então, como páginas de um velho livro, emergiam novamente as lembranças de certas horas de indescritível abundância - de pântanos quentes nos quais floresce a vitória-régia e de vegetações marinhas que de longe se vêem arder, ao meio-dia, sobre suas pálidas pernas-de-pau, defronte a costas de palmeiras. Faltava-me, porém, o medo que nos assalta sempre que vislumbramos o crescimento demasiado, o qual, de modo semelhante à imagem divina, com mil braços nos atrai. Eu sentia como, por meio de nossos estudos, novas forças despontavam para resistir aos ardentes poderes anímicos e domá-luz, assim como os cavalos são conduzidos pela rédea.

domingo, 8 de março de 2009

A DOR QUE NÃO IMPEDE O SONHO

JOHN FANTE TRABALHA NO ESQUIMÓ OU A DOR QUE NÃO IMPEDE O SONHO
*Luíz Horácio
John Fante trabalha no esquimó é um livro violento, quase feroz, afronta a indiferença, tão comum em nossos dias novelescos e “biguibrodianos”, seus contos retratam experiências nunca dissociadas do homem. Sejam elas cruéis, sejam elas oníricas. A dor não impede o sonho. É isso o livro de Mariel, sonho. O sonho que não queremos que chegue ao seu final e o pesadelo rotineiro de quem, por exemplo, vive na rua e cuja vida está por uma garrafa de álcool e um pau de fósforo. Estimado leitor, o cenário das histórias não é nada colorido, a trilha sonora não inspira amor, paixão, tampouco compaixão; mas o autor não se ocupa apenas em passear por esses escombros humanos, Mariel os apresenta como denúncia, não se trata apenas do esfacelamento da dignidade carioca, mas da que se alastra por qualquer parte onde se possa encontrar, em convívio permanente, uma centena de seres humanos. Estará instituída a degradação, a burla, a opressão, a seguir virá o ato da segregação e na cena final se dará o crime, assassinato, roubo, estupro. Triste é saber que esse espetáculo jamais sairá de cartaz.
O sonho que Mariel encerra nas 76 páginas de John Fante trabalha no esquimó é um sonho barulhento, tem sempre alguém sobre o fio da navalha, alguém que será vitimado pela afiada e inevitável lâmina;o homem que salta do ônibus, marcado para morrer, evita o som do revólver do matador , opta pelo som do corpo batendo na estrada. A gorda implorando para poder comprar companhia, o barulho das bolinhas de papel arremessadas pelo homem que vendia futuros ou o som de um homem sendo torturado.
Importante ressaltar que Mariel, feito poucos, consegue harmonizar o literário com o não literário, sua escrita assim como seus personagens, busca equilíbrio sobre um fio de arame farpado, lá em, baixo o abismo incandescentes. Sobrevive a coragem, a ousadia, os pontos vulneráveis, sim, eles existem, é a fragilidade que exige coragem caso você não saiba; e talvez o maior deles seja exatamente essa proximidade do real. E a realidade nem sempre é uma caricia, no mais das vezes, quer nas ruas, quer na literatura, é pura agressividade. Com precisão e sensibilidade de quem observa a vida com inconformismo, Mariel criou uma mistura instigante, soube cativar o leitor, combinou ingredientes estranhos , o resultado não é doce, tampouco chega a ser acido
ou azedo, no entanto, não evita o incômodo, a náusea por sermos tão parecidos com certos personagens de Mariel, este ácido flaneur carioca.
Sugiro, atento leitor, que você examine algumas fotos do midiático e oportunista Sebastião Salgado e depois leia John Fante trabalha no esquimó. A forma inversa também será aceita, não alterará o produto. A certeza do equívoco da máxima tosca que diz uma imagem valer mais que mil palavras. Feita essa experiência você saberá a diferença exata entre sensibilidade beirando a ingenuidade e oportunismo vislumbrando cifras.Altas cifras.
Mariel sua obra são pura honestidade e denúncia de nossa precariedade.
Seus contos ora são narrados na primeira pessoa, ora na terceira, a variação não implica em perda de intensidade, em John Fante trabalha no esquimó , o leitor observa uma fotografia do Rio de Janeiro, mas o autor evita os cartões postais, não são obras humanas; o que interessa, a matéria prima dos contos de Mariel é o homem, suas atrocidades, a barbárie envernizada, e uma dose mínima de ilusão .
Recomeda-se bater os ingredientes, servir em copo alto e sorver com o canudo da ironia, aspecto presente de forma sutil na maioria dos contos de Mariel. A abertura com Todos os homens são iguais onde o ator Charlton Eston, interpela o presidente de uma organização, protesta contra o espancamento de um homem negro. Em determinado momento o ator recheia seus argumentos apoderando-se de um rifle. Cabe dizer que o ator, o real, é um dos mais fortes defensores do porte de arma aos americanos.
“Atiraria em homens como aquele com um rifle deste tipo? Só porque desejam justiça, que sejam tratados como iguais e não como gado.”
O auto-ironia também está presente no conto Orfandade onde o fazer literário é despido de qualquer traço de um suposto glamour. “Quanto ao futuro e a tal unidade de que ele me perguntava, eu disse não me preocupar muito sobre isso, porque todas as coisas ao final falam de uma mesma observação, insistem em se escrever sob formas diferentes, às vezes frágeis, então descartadas, outras, fortes, aí aproveitadas mais na frente em uma idéia que a comporte em seu bojo.”
Antes de encerrar peço sua permissão, paciente leitor, nós, críticos, resenhistas nunca deixamos de ser ranhetas, e mesmo frente a obras contundentes, de extrema relevância, como este livro de Mariel, conseguimos encontrar problemas e não conseguimos desprezá-luz, mesmo que quase insignificantes, como no caso. Acontece que tais problemas podem vir a contaminar uma obra e por vezes infesta de modo a não permitir cura, uma promissora carreira. Tais problemas ocorrem nos contos Jonas, a baleia e em Por mil demônios. Nesses momentos o autor abandona o cenário por onde se movimenta com elegância e conhecimento e envereda por terras avessas ao seu projeto estético. O fantástico tornou os contos pueris. A baleia de Mariel remete ao inseto kafkiano, com prejuízo para o autor carioca, o demônio, por sua vez, repousava sobre um ombro e carregava em seu ombro um homúnculo, essa duplicidade do inesperado diluiu o impacto, tornou o conto circular. Mas, como alertei, isso também pode ser encarado como ranhetice de critico. Desconsidere se preferir, generoso leitor.
Aspecto bastante louvável é a coragem de Mariel ao remar contra a corrente do personalismo, do individualismo ou da variação romantismo edulcorado e sexo. John Fante trabalha no esquimó traz abordagens políticas, sociológicas, antropológicas, é quixotesco, não é pejorativo não, apressado leitor, tem a ver com a obra máxima Dom Quixote e é baudelairiano, em sua poesia cortante e no passeio critico pela cidade.
Mariel não foi nada modesto. Conseguiu dar cor à realidade e a solidão que ela encerra. Sorte nossa, privilegiado leitor.

HERANÇAS

HERANÇAS
Certos livros nos obrigam a lê-los camada a camada, pense numa cebola, imaginativo leitor. Outros nos forçam ao papel de taxidermista e aproveitamos apenas o invólucro.
Heranças, a obra mais recente de Silviano Santiago encerra as duas possibilidades acima.
Novamente a cebola, pele 1- velhice, pele 2-ambição,pele 3 -Machado de Assis, pele 4- cenas de uma Belo Horizonte provinciana, pele 5- cartão postal do Rio de Janeiro, pele 6-Shakespeare, pele 7-modernismo, pele 8-diário de um especulador, pele 9...
Walter, o cínico narrador de Heranças, vive num apartamento na avenida Vieira Souto no Rio de Janeiro e já preparou detalhe por detalhe o seu sepultamento em Botafogo, no cemitério São João Batista.
“Elegi a cidade, escolhi o cemitério.Decidi passar os últimos anos de vida no Rio de Janeiro e ser enterrado no S. João Batista.”
Assim tem início Heranças, e esse início já daria pano para muitas mangas, querem ver?
Seria o Rio de Janeiro uma cidade adequada para velhos? Ou quem sabe, o cemitério do Brasil? Inclua no rol das camadas listadas acima, por favor.
De frente pro mar, antes a tela do computador, e de costas pro Brasil Walter,ora Quincas Borba, ora Dom Casmurro, apresenta ao leitor suas façanhas, resultado de um caráter pra lá de duvidoso.
Trata-se de um romance naturalista onde o autor parece fugir de seu passado de escritor. Nada a ver com Uma história de família, onde desejo e morte não dispensam o tom sentimental, ou o brilhantismo do inusitado em Stella Manhattan .
A cafajestice de Walter faz de Heranças uma ode ao reacionarismo. Sim, condescendente leitor, este aprendiz está ciente do risco de ser taxado de reacionário ao afirmar que o livro reacionário é reacionário.
Importante ressaltar que em tempos de predomínio da estética da favela, da marginalia, do operário sofrido, quer no cinema, quer na literatura, Silviano opta por um representante do topo da classificação social. Sim,paciente leitor, nossa terra tem palmeira, mas também tem a turma que acumula riquezas, nem todos são da linhagem de caráter do Walter, mas, em sua maioria, carregam farta parcela de culpa pela miséria crescente em qualquer cantão desse país.
Mas quem é Walter? Walter é parente de Jean Sibelius, personagem de um conto de Julian Barnes no livro Um toque de limão, dos velhos canalhas sedutores, personagens de Juan Claudio Lechin em seu abominável A gula do beija-flor.No trabalho de Lechin as maiores semelhanças com as atitudes de Walter onde o desprezo pela mulher se faz notar. Se no livro do boliviano a apologia do sexo livre de sentimentos é a tônica e se Santiago não chega a esse extremo, pois quando Walter abre a guarda é enganado; a ausência de escrúpulos induz abortos e a morte de uma mulher grávida.
O personagem de Silviano Santiago também tem um parentesco com o anão Gregório(também atende por Goyo, Goyto ou Gregori)de Maldita Morte- obra indispensável de Fernando Royuela, preste atenção. Assim como Walter, Goyo aguarda a morte.
Walter: “Confesso.Estive metido de maneira em nada circunstancial no acidente com o Chevrolet. Até a presente data, não tinha conseguido expressar por escrito o envolvimento. À noite, confiei raríssimas vezes palavras de culpa às paredes do quarto.” Sobre a morte da irmã.
Gregório: “Ao longo da minha vida, conheci múltiplos filhos-da-puta e a nenhum desejei uma morte ruim.Meu irmão Tranquilino, no entanto, teve-a. Um trem de carga levou-lhe pela frente a primogenitura.”
Sobre a morte do irmão.
Em Heranças, a figura feminina é sinônimo de obstáculo. No entanto essa resistência não chega a influir no andamento dos planos de Walter, visto que dura pouco, a eliminação desse elemento complicador é uma questão de tempo. Pouco tempo.
Mas vamos a trama.
Walter está em eu apartamento na Vieira Souto, frente pro mar, na companhia de empregados e o indefectível uísque. Em seu computador escreve a sua história, misto de autobiografia e conversa com o leitor. Descreve suas façanhas, as do empresário bem sucedido e as do don Juan inescrupuloso. Lembram das camadas lá em cima? Pois bem, curioso leitor, você também ficará sabendo de detalhes sobre uma Belo Horizonte antiga, será apresentado a alguns pontos turísticos cariocas e sobretudo fará contato com um ser extremamente inescrupuloso, capaz de varrer a própria irmã da sua caminhada rumo a herança.
Sedutor , inescrupuloso, Walter gastou sua vida em marcha veloz rumo a seus objetivos. A velocidade não diminui jamais, não importa se com morte de pai, assassinato de irmã, abortos, Walter quer “chegar lá.” E chega. Utilizando métodos pouco ortodoxos, mas isso não passa de uma insignificância a esse canalha desprovido de charme e simpatia.
Com a morte do pai, a irmã herda o Armarinhos S. José , logo Walter trata de despachá-la, torna-se comerciante, na seqüência envereda pelos meandros da construção civil e para especular na bolsa de valores é um passo curto. Soube moldar-se às exigências dos anos JK, não encontrou dificuldades de adaptação ao período ditatorial e muito menos ao mercado de ações. Ser extremamente adaptável, termina a vida utilizando o computador para realizar seus investimentos e escrever a sua história. Excetuando-se o lucro, tudo o mais seria irrelevante. Inclusive os seres humanos que porventura significassem qualquer tipo de obstáculo nessa corrida rumo ao enriquecimento.
Inescrupuloso é o adjetivo que melhor se adapta a Walter, jovem freqüenta os prostíbulos de Belo Horizonte, no entanto não limita a profissionais suas incursões sexuais, empregadas domésticas em leitos pouco convencionais, os matagais, também engrossam sua lista de conquistas.
Também conserva o hábito de desvirginar moças, não tão recatadas, da sociedade mineira. Rico, sobram-lhe argumentos para demover todas reações a seu comportamento.
E assim caminha o humanismo de Walter, o milionário sedutor.
Infelizmente ele não está sozinho nessa cruzada que leva ao clube dos “bem sucedidos profissionalmente”, primorosamente Silviano Santiago faz uma critica corrosiva à sociedade e à economia em nosso país no período compreendido entre a batuta de JK e o pandeiro desafinado de Lula.
Se Maldita Morte é um romance desprovido de amor, o máximo que se pode identificar seria a sua intenção, no mais, eflúvios do desejo carnal e piedade, em Heranças o amor está presente, embora um amor maltratado.
Walter se apaixona três vezes e a tragédia acompanha o amor. A arquiteta Denise é abandonada. Marta, a guerrilheira, aproveita um vacilo de Walter e usa o “esperto” como instrumento para fugir à prisão e inevitável tortura. Logo mantém um romance com a advogada e milionária Graci. Esta não o inclui em seu inventário. Nem tudo foi exitoso nas tramas incansavelmente urdidas por Walter.
Das mulheres sofisticadas Walter suga-lhes o requinte e a cultura; a contrapartida se dá em forma de viagens. Rio de Janeiro na década de 60 , daí em diante Europa.
Numa de suas viagens, México, encontra a enfermeira Carmen, apaixona-se e como se diz “sossega o facho.” Para não quebrar a regra, chega o dia em que Carmen também é abandonada.
Uma questão sobressai. É aqui que entra Shakespeare, na necessidade de definir o herdeiro. Do mesmo modo que em Rei Lear, a escolha do herdeiro, quais critérios Walter utilizaria para definir o beneficiário, ele que conquistara dinheiro e mulheres? Como não tem descendentes a escolha recairá, de forma inusitada aparentando uma tentativa do autor de redimir personagem tão abjeta, sobre alguém sem laços sanguineos, mas que já “rondara” a família. Estamos diante do desfecho do livro e aí falou mais alto o moralismo, a mea culpa de Walter. Desandou.
Culto leitor, não ingresse no rol dos taxidermistas, é sempre uma possibilidade, ao tratar de Heranças, enverede pelas camadas, vista a pele de Walter e retire pele por pele conforme ele faz com as vestes de suas vitimas sexuais.Mas ao contrário dele, o faça com bastante amor.






TRECHO
A amizade é sempre pasto de velhas e novas carências. Quando os sentimentos familiares, amorosos e profissionais entram em dieta afetiva, o boi-memória se alimenta do capim-gordura no pasto das antigas camaradagens. Como aqueles sentimentos foram parcos na vida de homem solitário, notívago, mulherengo, globetrotter e milionário, os velhos amigos são mais do que o capim-gordura, que sacia a fome do boi-memória. Proporcionam a recuperação de energia vital pelos sete estômagos dos afetos, que ruminam as saudades dos tempos de menino e rapaz na cidade de Belo Horizonte, que cresce anarquicamente. São a força que me impeliu a imaginar - para nela querer acreditar - a inapelável existência da solidariedade no planeta Terra. Se quiser reconhecer a sim para além do espelho fixado nos azulejos coloridos acima do lavabo, o ser humano não pode renegar os olhos dos coleginhas de infância. Não são eles que lhe proporcionaram, e continuam a proporcionar a boa imagem de fora pra dentro?
Se os renegar, acabará por pedir socorro à religião. Levantará os olhos do espelho em direção a um deus todo-poderoso, esculpido em barro ou madeira, em letra impressa ou idéias.
- Vade retro!
Desde que optei pela solidão acompanhada, invoco com freqüência essa deusa demasiadamente humana, a que chamo de Amizade. Aos pés de seu altar, onde impera o rosto esculpido em legitima hematita mineira, ajoelho e rezo nos momentos sorumbáticos do dia ou da noite. A Amizade é uma espécie de pólo catalisador da sensação concreta e extraterrena de fraternidade.
O AUTOR
Silviano Santiago é escritor e critico literário. Por quatro vezes recebeu o Prêmio Jabuti nas categorias de romance e conto. Entre seus livros de ficção destacam-se Em liberdade, Stella Manhattan, Uma história de família, De cócoras, O falso mentiroso, os livros de contos Keith Jarrett no Blue Note e Histórias mal contadas, os ensaios Uma literatura nos trópicos, Nas malhas da letra e As raízes e o labirinto da América Latina.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

VERBETE

"Prasempre!" Desde que escutei pela primeira vez,a sonoridade me pareceu pouco nítida para não dizer completamente fora do foco da realidade. Dia desses, uma mulher me perguntou se eu seria capaz de amá-la prasempre, e eu, assim como os demais de nós, homens supostamente intelectualizados e temerosos de nossos sentimentos, busquei aquela saída convencional dizendo que sempre é algo muito distante. Muito além do alcance humano. No entanto ela disse que me queria prasempre, foi quando me dei conta que também a queria com igual intenção e que não era nenhuma desonra confessar tal aspiração. Daí em diante a preocupação passou a ser outra: "como construir o prasempre?" Decididamente não seria com o mesmo material utilizado por muitos de meus conhecidos. Como fazer? Resolvi então que a partir da certeza do meu amor por essa mulher e das sensações incomparáveis que ela me causa, se tornava óbvio objetivar a continuidade do prazer. Exemplo eu tinha. Quando garoto meu professor de literatura escreveu duas frases-dedicatórias num exemplar de livro seu. Professor e frases estão em mim.Prasempre. No frigir dos ovos somos todos egoístas e tudo que buscamos é com a intenção de que seja prasempre. Que o automóvel não enferruje, que o vaso jamais quebre, que as fotografias nunca se apaguem e aqueles que amamos estejam sempre a nossa disposição. Poucos admitem, mas a verdade é essa. Logo cedo percebi a morte, o fim, isso num primeiro momento me abalou, me derrotou, por que continuar um jogo com o resultado previamente estabelecido onde todos perdem e o grande adversário invisível acumula regozijos cínicos? Minha infância foi a tentativa de evitar e depois compreender o veneno anti-ético da morte. Meu pai, minha mãe, meus irmãos, meus amigos, um dia todos desapareceriam assim como já acontecera com meu gato, com meu cachorro de estimação e meus passarinhos. Minha assustada meninice me postava entre dois extremos: um de onde mal eu tinha saído e outro que jamais seria alcançado. Porém como quase toda criança, no meu caso com um pouco mais de dor, conseguia deixar de lado os pensamentos comprometidos com a realidade e junto com meus amigos visitava o jardim das fantasias. Cresci e optei pelo mundo da minha imaginação. Sua existência dependia de mim, se eu tinha os planos era por que a construção era viável. Meu objetivo era trapacear, enganar a morte, desviá-la daqueles que eu queria bem, que na verdade guardavam pedaços meus e se morressem, eu morreria também. Se a fantasia não me impediu de sofrer pelo menos me fez entender que algumas coisas podem ser prasempre. E só pode ser pra sempre tudo aquilo que não exigir espaço. Mas o prasempre é algo que não surge livre da dor, infelizmente. Foi assim com meu professor, foi assim com outras poucas coisas e está sendo assim com meu amor. Falo de meu grande amor que foi precedido da minha dor e solidão frutos ácidos da autodepreciação e preguiça de acreditar na fantasia. A solidão é um artifício muito utilizado pelos covardes da minha laia. Nos escondemos, congelamos nossa afetividade e se não amamos não corremos o risco da rejeição, da perda, da frustração. E assim permitimos o tempo andar sobre nós. Até um dia... O dia em que percebemos que podemos permanecer assim prasempre. Sem dor, sem medo, imóveis. Como as pedras. A pedra escondida é a materialização do prasempre, pior, muito pior que estátua. Minha fantasia exige movimento e eu não sabia, talvez por isso me doesse tanto estar parado. Pouco importando se frente ao mar ou deserto.
Em certo entardecer meu mundo começou a rodar no sentido oposto. Fazia frio e alguém acendeu a luz, meus amigos e parentes continuavam morrendo, normal quando a infância é um carrinho distante virado de rodas pro ar no marco zero de minha caminhada. Normal, porém triste. E naquele dia eu vi a mulher que também me viu. Alguns dias se sucederam até revê-la e então trocamos algumas palavras, o suficiente para eu me dar conta que desde minha infância sonhava com uma mulher como aquela. Hoje o sonho é também meu despertar e quando sofro é simplesmente por que ela não está comigo. E como sofro!!!! Nunca amei assim, nunca sofri tanto assim. E se digo isso é para comprovar que esse é meu amor definitivo. Se é definitivo significa que é prasempre? A pergunta se justifica embora nem sempre o definitivo represente o prasempre . Ainda mais em se tratando de amor, pois o que é o amor? Amor é aquilo que não sobrevive individualmente. Sendo o amor o mais dissimulado dos sentimentos é também o terreno preferido do prasempre pois não é raro o amor se apresentar com a maquilagem da ilusão. Ex. Quando um afirma amar prasempre na intenção de obter alguma vantagem ou mera manutenção de algo que o satisfaz. A individualidade tentando dominar aquilo que ela acredita ser amor e, no entanto é um mero exercício de violência. Contra seus próprios sentimentos e contra o outro. O amor nunca é prasempre visto que é vivo e tudo que é vivo precisa morrer. Mas o que me interessa é o mundo da fantasia e da minha imaginação o que me leva a acreditar num amor imortal. É isso. Não eu não tenho 17 anos, tenho muito mais e não acredito em nada, nada mesmo que não seja produto da fantasia, do imaginado, do sonhado. Eu sempre sonhei com essa mulher, eu não sabia, mas era ela, não havia a definição de um rosto e podia ser qualquer rosto mas era ela , o sonho naqueles dias de meninice já era sonhado, não eu não tenho 17 anos, tenho muito mais e acredito no meu sonho, um sonho prasempre.Mas acreditar não basta é preciso viver a realidade com fantasia, fazer da vida, da minha vida, um sonho bom. Mas que não me obrigue a despertar na melhor parte. Viver é preencher o álbum dos acontecimentos. E só merece esse título aquilo que transforma. Um acontecimento pode ser o desabrochar de uma rosa, caso eu presenciasse, o passarinho rompendo a casca do ovo sob meu olhar. No entanto isso nunca aconteceu, quando eu chego eles já estão lá, a rosa e seu perfume, o pássaro e seu canto. Na minha vida foram raros os acontecimentos, nascimento e morte de filhos, duas ou três amizades, alguns livros e um entardecer de Abril.Agora me atrevo a dizer que descobri o significado do "prasempre". Prasempre é simplesmente a vontade de estar bem e eu quero confessar aqui diante de todos vocês que de uns tempos pra cá só me sinto bem junto dessa mulher. Dia desses recebi alguns elogios e contei ao meu pai, ontem uma atriz famosa pediu um texto meu e contei o fato para o Marcelo, para o Ronaldo, minha vida não vale nada se eu não transmitir às pessoas que amo um pouco de alegria, é uma dívida sendo amortizada, pois não consigo ver muita graça em mim, se não fossem meus amigos, meu pai, meus filhos...não sei.Cedo, muito cedo, me dei conta que eu era apenas um fragmento. Daí a acreditar que o fragmento era do nada, um pó do futuro não foi preciso muita reflexão, confesso. Pai, amigos, filhos me mantinham num permanente recreio, por um tempo eles foram suficientes, mas tudo tem um limite, o abismo me aguardava e eu, covarde, apenas olhava. Até que surgiu essa mulher e hoje, sem afobação, posso amar muito mais a todos que me amam e aqueles que não são amados por ninguém. Já não me sinto um grão do nada, mas um pedregulho do amor.Rejane, eu te amo prasempre.

RELATIVISMO E IMAGINAÇÃO

RELATIVISMO E IMAGINAÇÃO
OU AMOR, DEUSES, MORTE E UMA PITADA DE INVEJA
A incapacidade de se conhecer o mundo segundo a conclusão do ceticismo bem como afirmar que a compreensão do mundo é resultado de um ponto de vista particular concluindo desse modo que não há nenhuma perspectiva universal sobre o mundo. Optar por uma das correntes é arcar com o ônus de uma argumentação infindável. Mesmo assim arrisco algumas considerações lançando mão de certas “muletas” intimas do ser humano.
A mais notória, sem dúvida, a religião; e a seguir, a morte que por incrível que pareça não é difícil encontrar quem a aceite como relativa. Tanto na religião como na morte acusamos a presença do sagrado, a união do visível com o invisível, do inquestionável segundo os religiosos , inclua-se aí os espíritas pois eles prioritariamente unem a natureza e o sobrenatural.
Antes de prosseguir vale dizer que defender o relativismo não parece tarefa das mais árduas, visto que a tudo se pode relativizar, ao percebermos que tanto morte como o possível Deus também podem ser relativizados,, o que nos resta? Desse modo os ódios podem ser amenizados e os amores também permitem um certo embrutecimento, do território de ninguém podemos avistar o território de todos, do vale tudo? E onde fica o amor desinteressado dos gregos, que significava fato de se alegrar com a simples existência do outro?
O que fazer frente a tantas opções que não levam a uma conclusão plenamente satisfatória?
Partimos pois do sagrado. O que é o sagrado ? É a união do terreno, do humano, com o além. Um ser, dotado de poderes sobrenaturais, católicos o identificam nas imagens, madeira, gesso,ferro, pouco importa,Deus está ali, da mesma forma,, para o catolicismo,Deus também habita a pequena hóstia.
Artistas, os mais midiáticos entenda-se, também lhes são concedidos centelhas do sagrado pela admiração popular, são considerados seres “iluminados, abençoados, fenômenos”.
Quem de nós não ouviu que “a vida é sagrada”? É? Mas que vida, a humana tão somente? Por quê? Não matarás se aplica exclusivamente à vida humana? No entanto, mata-se? Donde deduz-se que o “não matarás” também é relativo. É?
E se temos o sagrado, tudo o mais é profano? Não creio na necessidade desses antagonismos, nessa polarização, mas se não é assim, então como ficamos? Simples, tudo é relativo.
O sagrado é relativo, Deus é relativo e viver e morrer também podem ser relativos. Tudo depende.Entre os gregos não havia deus, mas não lhes faltava divindade, entenda-se como divindade a harmonia cósmica, uma forma de transcendência. No livro VI de A República, Platão nos fala do divino e não dos deuses. Kant, por sua vez, na última parte de Critica da Razão Prática lança mão do religioso, fala dos valores transcendentais.
O homem inventou Deus , e depois? Acreditou. Lembro de Voltaire “Deus criou o homem à sua imagem e este lhe pagou na mesma moeda.”
Enfim, tudo vai depender da crença, e onde há crença a informação pode ser duvidosa, ou seria relativa?,quem entende relativa a morte deve entender relativa também a vida e vice versa. Quem assim age em relação ao sagrado opera o mesmo com o profano. O que nos resta fazer? Tirar um pouco de sagrado do sagrado e um pouco de profano do profano? Religião e superstição, inseparáveis?
Amenizar todos os discursos? A opinião sensata seria não emitir opinião?
Sagrado, Deus, vida e morte, se discordo veementemente da relativização dos referidos temas, também sou forçado a aceitar o senso comum que indeciso entre o egoísmo e a covardia inventa seus desvios na busca vã do cálice da eternidade. Lamentável! Lamentável pois o núcleo antropológico que alimenta e sustenta o religioso tende a se perpetuar. O religioso e o divino, o divino que transcende a moral, que transcende a religião, pode ser uma alternativa, mas ao tratarmos dessa forma, não estaríamos operando com o relativismo?
Enfim, tudo é relativo. Seria mesmo? Talvez.
Vejamos o amor. O que é o amor? Amor é reencontro, digamos. Mas se temos A necessariamente teremos B a fazer-lhe contraponto. Logo teremos o mal. O que é o mal? A negação. Quem sabe?Percebemos o mal à primeira vista, e o amor? Esse não. Amor é a arte do reencontro. Os grandes amores não acontecem à primeira vista, conforme afirma Michel Serres. É do esquecimento do primeiro encontro que surgirá o amor. E o mal,de onde brotaria? Da inexistência do reencontro? Bem, aí é relativo. Tem gente que nasce predisposta ao mal afirmam certos estudos, até que ponto confiáveis não sei.
Mas digamos que o amor e o mal sejam relativos, como interpretar a atitude de um estudante americano que dispara contra seus colegas de escola?
Como entender aquele homem que aos cinqüenta anos vive o amor que imaginou na infância? E esse amor é exatamente o fruto de um reencontro, sentimento que se mantivera virgem por duas décadas? Isso daria razão à tese de Michel Serres , na verdade o amor à primeira vista é prerrogativa da ficção, da literatura, do cinema?
Se levarmos em conta que o amor do homem de cinqüenta anos também é fruto da sua imaginação, da persistência da sua imaginação, podemos concluir que ambas possibilidades podem se estabelecer ou não, e sendo assim tanto a origem do amor quanto a do mal, são relativas.
Até aqui usamos o relativismo para tratar dos enunciados, ainda não tratamos das inevitáveis conseqüências.
Para não nos alongarmos muito, nos limitaremos a questão do mal. O mal relativo. Pode? Quem sabe?
A guerra, por exemplo, pode ser relativa? Se é relativa admite o bem e o mal. É óbvio que para a indústria armamentista é um bem, mas para o soldado recrutado independente de suas convicções, não passa de um transtorno, um abuso de autoridade que pode custar-lhe a vida, não sem antes obrigá-lo a dispor de inúmeras outras caso pretenda se manter vivo.
Visto por todos os ângulos possíveis o relativismo nos parece uma opção ou uma orientação bastante cômoda quando na sustentação de determinados pontos de vista. É quase como tentar descobrir quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha. Vai depender de a quem interessar ser um ou outro naquele exato momento.
Para concluir busco socorro no homem de cinqüenta anos, ele não crê em deuses, sabe -se concessão da morte, não faz relativo seu amor e respeita sua imaginação. Esse homem de vez em quando voa. Solitariamente para não provocar inveja.
E por falar em inveja, ela aceita o relativismo?


Luíz Horácio

TERMINAMOS MAL,FAUSTO WOLFF

TERMINAMOS MAL, FAUSTO WOLFF


“Começamos mal, Luíz Horácio.” Essas foram as primeiras palavras que Fausto Wolff me destinou graças ao meu atraso de dez minutos para uma entrevista marcada por telefone.
A seguir quis saber das razões do meu interesse em entrevistá-lo e quais informações a seu respeito eu trazia.
Disse-lhe que tanto me interessava sua obra como suas posições pessoais. “Mas o que dizem de mim, que tipos de informações você recebeu?” Com a sinceridade temerosa respondi: “Disseram que você é a pessoa mais grosseira do Rio de Janeiro, um jogador, um viciado, mais fácil marcar entrevista no jóquei, e bêbado.”
Encheu um copo com uísque e gelo e começamos a entrevista. Tensa a princípio, ele parecia contrariado, prazerosa logo a seguir.
Ao terminarmos a garrafa de uísque jazia sem utilidade. Nos despedimos e antes que eu alcançasse a porta de seu apartamento em Copacabana ele me chamou: “Espera! E agora o que você tem a dizer a meu respeito?” Novamente assaltado pela sinceridade temerosa, respondi; “ Digo que você é bêbado apenas”. E nos abraçamos num abraço que ainda hoje me envolve.
Assim era o Fausto que me permitiu várias palavras, algumas nas orelhas de dois de seus livros; Um lobo atrás do espelho e A milésima segunda noite. A meu respeito disse algumas frases no Pasquim e no JB, lembro que na época, eu vivia meu terceiro casamento, disse a minha mulher que colocaria num quadro, e ela: “deixa de bobagem, pra que tanta vaidade?”Os jornais estão comigo. Vivo meu quarto e derradeiro casamento e já mandei emoldurar os jornais. Em meu primeiro romance, Perciliana e o pássaro com alma de cão, está um dos maiores presentes que Fausto me deu, o prefácio, mas eu, aluno torto, abusei e o transformei em personagem desse mesmo romance. Ele nunca reclamou.
Um dia, eu queria guardar aquele Fausto para mim, decidi gravar um documentário com ele, sobre ele. Coincidentemente demos inicio a gravação em 01/08/2003, aniversário de dez anos de minha filha Thamara. Dias antes ao perguntar o que ela queria de presente, respondeu: “quero um presente vivo”. Imaginei um ramster. “pai, ramster é coisa de viado” Um presente vivo, logo me veio uma tartaruga, eram vendidas na Siqueira Campos entre Tonelero e Barata Ribeiro. “Cara, não vai me dar uma tartaruga, tartaruga nunca vale quando se examina possibilidades.Tartaruga é um tijolo atrevido, um tijolo com excesso de personalidade, não é um bicho.”
Antes da hora marcada estávamos no Fausto, ou melhor, o encontramos quando entrava num táxi, pegamos carona, chegamos juntos. No elevador ele perguntou a idade de Thamara e ela informou que naquele dia completava dez anos. “Então temos que comemorar”.
Enquanto gravávamos Thamara dividia sua atenção entre os potes e potes de sorvete e o olhar atento ao Fausto. Naquela manhã /tarde todos nós tivemos uma grande aula de sinceridade, acima de tudo. Terminada a gravação, minha filha mereceu ainda mais atenção de Fausto. Ele pedira a Cláudia, sua incansável secretária, que providenciasse um bolo. E o bolo foi providenciado, como vela e o parabéns que o coro dos desafinados cometeu.“Cara este é o meu melhor aniversário” ouvi de minha filha enquanto nossas lágrimas escorriam.
E Fausto inventou uma desculpa para se afastar da sala e “fugiu” pelos fundos, tinha um páreo que ele não podia perder.Foi Cláudia que informou: “Seu Fausto pede desculpas, foi ao jóquei, disse que não se despediu porque não agüentaria, mas fiquem à vontade, dona Mônica já ligou, está chegando.”
Saímos e logo paramos no bar Lucas, na Av. Atlântica; Marcelo, Nina, Saraiva,Santarosa, Luciano, Tanussi, foi lá que Thamara falou: “Obrigado, pai. Foi o presente mais vivo que você podia ter me dado.” Ela se enganava, aquele presente não fora dado por mim, era obra da amizade.
E assim era Fausto , não apenas com minha filha, mas com todas as crianças.
E agora Fausto? Lembra que no final de 2006 você me chamou de traidor porque você não identificava entre seus e-mails um conto que eu enviara repetidas vezes, lembra? Pois é, você me chamou de traidor e quis saber se o que eu queria era grana, lembra? E por isso deixei de procurá-lo por mais de ano? Não sou bêbado, mas você sequer desconfiava que ainda sou muito mais burro que você. Pois é Fausto, chegou a minha vez de acusá-lo de traição. Você me traiu, Fausto, que merda Fausto, nunca é hora de morrer Fausto, porra Fausto!
Confesso: não tenho traços de espiritualidade e não acredito em vida depois da morte. Morreu acabou, uma merda, mas é assim. Ontem uma amiga escreveu para mim dizendo que Fausto tinha nos deixado, detesto esses eufemismos. Fausto não nos deixou, Fausto morreu. Alguma coisa matou o Fausto.
O Fausto que me deu de presente um time de pessoas que fazem a vida valer a pena, talvez eu esqueça alguns, agora lembro do Marcelo Backes e a Nina, do Ziraldo, do André Seffrin, do Luís Pimentel, da Rosemary Alves, a Rose da Bertrand e seu filho Rafael, do Jean Scharlau, da Mariana Roiler, do Renato da ed.Revan, do Antonio Lobo, do Chico Caruso, da Denise da Toscographic. Não preciso incluir a Mônica, antes de ser mulher do Fausto, a fada que o protegia.
Fausto gostava de reunir seus amigos em seu amplo apartamento da Atlântica, certa vez, casa lotada, antes do seu primeiro discurso; geralmente ele proferia três, mandou essa: “Que maravilha, tanta gente e nenhum filho da puta!”
Mas o que era um filho da puta para o Fausto? Todo aquele que desrespeitasse o ser humano, sobretudo os mais humildes.
Fausto também assustava, gerava antipatia, sobretudo naqueles que não o conheciam muito bem. Assim se deu com um casal de amigos, o Ronaldo Amaral e a Marília, que convidei para comemorar uma passagem de ano no apartamento de Fausto. Lá pelas tantas Fausto, sério e bêbado, deu uma ordem e disse que todos teriam de obedecer pois ele estava pagando tudo. Brincadeira que meu amigo não entendeu assim e aqui publicamente peço desculpas em nome do Fausto.Mas quem de seus amigos não teve de um dia pedir desculpas em nome do Fausto? Fausto nos colocava em seu barco, ser amigo de Fausto sempre teve seus prós e seus contras, mas era daquelas pessoas que eu gostaria que morassem no ap. ao lado do meu, assim como meu pai e meus filhos.
Por um tempo fundamental em minha formação de escritor e de homem, trabalhei como seu secretário. Costumava chegar por volta de oito horas e já encontrava o Fausto escrevendo, sem camisa, só de cuecas “ao lado do mar” de Copacabana. E para quem não sabe ou desconfiava do contrário, revelo;o Fausto não bebia uma gota de álcool enquanto escrevia. Nessa época quando escrevia Olympia que fiz, com ele, meu curso de Literatura . O da universidade não acrescentou nado ao que meu pai e Fausto já tinham me ensinado.
Por volta de meio-dia ele parava de escrever e me chamava: “Meu filho, quer ouvir?” E lia a sua produção. Perdi as contas de quantas vezes chorei ouvindo Fausto.
É por tudo isso, Fausto, que “to puto contigo”, traidor, fujão. Você traiu a mim, Thamara, Mônica e mais uma porrada de amigos, não tínhamos combinado essa palhaçada de você morrer.
“Terminamos mal, Fausto Wolff!”
Mas você se engana, não serão essas minhas últimas palavras para você, prometo incomodá-lo até enquanto essa maldita morte não me transformar também num traidor.
Eu te amo Fausto Wolff. Sempre te amei.
Ia esquecendo; quando eu lia O lobo atrás do espelho ainda no disquete e me emocionava liguei para o Fausto para saber como ler chorando. Agora, Fausto, queria ligar para perguntar a você como escrever chorando. Não foi fácil, Fausto, você me paga...
Luíz Horácio

QUEM AMA LITERATURA NÃO ESTUDA LITERATURA

QUEM AMA LITERATURA NÃO ESTUDA LITERATURA
Quem ama literatura não estuda literatura – ensaios indisciplinados é um livro despretensioso, porém de suma importância com uma mínima ressalva. O autor parte da literatura para o cotidiano e também faz o caminho inverso sem atropelos, um deleite para o leitor.O título Quem ama literatura não estuda literatura pode, num primeiro momento, parecer estratégia de marketing, objetivo principal: chamar atenção e depois, quem sabe, entrar no mérito. A publicidade, é importante dizer, não entra. Joel Rufino dos Santos soube montar sua equipe, reuniu personagens, reais ou imaginários: Darwin, Marx, Napoleão, o dr. Cláudio de O ateneu e o Ismael de Anjo negro e deu um nó no senso comum acadêmico, literário ou o que quer que remeta a repetição de informações, terreno onde os professores universitários, a maioria, adora se movimentar. É nesse lodaçal que eles "brilham" analisando obras que só eles leram e definem o que é bom e o que é execrável. Sim, execrável, para eles não existe meio termo. Quem ama... é a despedida de Joel Rufino das salas de aula, no entanto no transcorrer da leitura (da aula?) o leitor atento perceberá não uma despedida, mas um convite ao conhecimento.
Diferentemente do que costuma ocorrer com seus colegas, Joel não puxa a brasa apenas para o seu assado, não faz da literatura algo sublime, muito pelo contrário, a expõe, examina sua função e suposta utilidade, eliminando assim qualquer possibilidade de glamour em torno dessa arte. Fez com que recordasse de recente entrevista de nosso colega Luiz Paulo Faccioli : "o compromisso primordial que o escritor tem para com a sociedade é o de produzir literatura."
Mas isso é óbvio você pode pensar apressado leitor das superfícies, lógico, ainda não sabe que o óbvio é o mais difícil de ser explicado e, no seu caso, assimilado. Tão óbvio o rigor de Luiz Paulo para com a literatura o que nos leva a lamentar que tal obviedade não ocorra em outras profissões, como a medicina, os profissionais do futebol, para não nos alastrarmos pelo vasto terreno dos charlatões.
Mas voltemos a Quem ama... e sua singela abordagem das relevâncias literárias e culturais de modo geral.
Ainda me socorrendo da frase de Luiz Paulo e diante da quantidade cada vez maior da rala literatura contemporânea onde os pseudos escritores não produzem literatura e sim frágeis boletins de ocorrência, meu amor se faz a cada dia mais frágil.
Não sei ao certo se amo a literatura, antes preciso definir se é ela que me faz sofrer ou se é por meio dela que extravaso meus sofrimentos, o certo é que para amar literatura é necessário que "neguinho" tenha um quê acentuado de masoquismo. No cenário atual onde os escritores conseguem fazer literatura sem que o pensamento seja refém da emoção, amar significa correr risco ou a certeza do aborrecimento. Estranhou, inculto leitor, pensamento e emoção? Saiba então que o pensamento que atua na literatura é a emoção sistematizada, emoção que foge ao habitual, até alcançar dignidade e convicção. Entendeu? Não? Quer dizer que a razão não é o bastante para escrever um grande romance. Ah agora foi! É isso, e quando amar se torna difícil estudar passa a ser castigo. Em nosso ofício de resenhistas e o particular de professor somos forçados a estudar e o caminho único é aprofundar a leitura dos clássicos, sempre. Joel Rufino traz Dostoievski, Nelson Rodrigues, Lima Barreto,Freud, Balzac, Raul Pompéia, Alejo Carpentier, e fura o cânone ao não justificar seus pontos de vista com Machado de Assis, no entanto dispensa a Lima Barreto atenção mais que merecida e exagera ao creditar a Nelson Rodrigues responsabilidades sociológicas e antropológicas. Atenção novamente você apressado e espírito suíno leitor, as conclusões acima são de inteira responsabilidade e risco deste aprendiz.
Aproveitando a deixa , impossível não destacar o esclarecedor e imperdível estudo sobre a análise do trabalho a partir de O Capital do imprescindível Marx. Didatismo na dosagem exata, estímulo à curiosidade de todo universitário não tão alienado. Vale o livro
Quem ama...traz quatro ensaios Perturbadores do Sono do Mundo; Madalena, ou a falsidade da Literatura; Quem ama mata e Nos arredores do NorteShopping de fio condutor comum, porém com temática bastante diversa o que dispersa a atenção do leitor, se no primeiro Joel é muito mais sociólogo, dos melhores é bom que se diga; no segundo faz uma análise, distanciada até onde o possível lhe permite; da literatura e do fazer literário, no terceiro Joel parte do parricídio cometido por Suzane von Richthofen e segue por detalhada exegese da peça Anjo Negro do superestimado Nelson Rodrigues, deixando clara a perda de fôlego do autor que fecha o volume com seu quarto ensaio, o mais frágil, apesar da imperdível e irônica, no que isso possa ter de melhor, abordagem da obra e autor Lima Barreto.
Quem ama literatura não estuda literatura, o título que despertou a atenção do curioso leitor ao final da leitura se tornará algo de menor importância tamanha a qualidade de informações que o autor apresenta ao longo dos 3 primeiros ensaios principalmente. O quarto, se não chega a manchar o volume também pouco acrescenta e faz com que o autor sucumba a execrável norma vigente de a tudo relacionar com a contemporaneidade, com o pós-moderno e aí cabe tudo, Collor, TV, a frase preferida do tosco de nove dedos "nunca na história desse país...", a nefasta e gasta questão: novela de tv é literatura? A essa pergunta que Joel formulou como provocação a seus alunos peço licença para agregar uma outra tão relevante quanto: novela de rádio é literatura?
Antes de encerrar permita, quase comovido leitor, uma breve reflexão suscitada por Joel após leitura das páginas iniciais onde ele aborda a utilidade da literatura.
O que, de fato, constitui a literatura? Se o que constitui uma coisa é, basicamente, a sua função, a literatura se constitui, em primeiro lugar, de inutilidades. Muitos escritores – entre eles Jorge Luis Borges – deram esta definição de seu ofício: a literatura não serve para nada.:
Depois de reler o trecho hoje pela manhã, recebi o telefonema de uma mulher, querida deste aprendiz, se despedindo...para sempre. Olhei minha montanha de livros e chorei. Não sei quem desligou o telefone, a literatura tem um compromisso com o trágico, gostaria que pelo menos servisse para destruir a dor, a solidão e o nada que me invadiu após o telefonema.
Seja o que for sou forçado a concordar com George Steiner quando diz que " a critica de literatura procede da falta de amor." E esvaziado de amor enveredei pela leitura de Quem ama literatura não estuda literatura e cheguei ao seu final apaixonado pela busca de um conhecimento cada vez maior.
Encerramos lembrando Quixote, surrado e apedrejado por persistir em suas ilusões- por que ele nos comove até as lágrimas ,por que ele nos acompanha, por que nos sugere que esta vida faz sentido no final das contas, a despeito de tudo.
Obrigado Joel, perdoe Luiz Paulo por me apropriar da frase sem pedir licença.
Luíz Horácio







TRECHO
O racismo e sua forma benigna, o preconceito racial, têm algo em comum: ambos se enraízam na psique sob a forma de esquizofrenia – uma repartição da mente com a conseqüente substituição da realidade pelo delírio. Assim, por exemplo, o brasileiro rejeita o negro, sendo ele próprio a síntese de negro, branco e índio; e substitui o negro real pela idealização do negro (sujo, sensual, burro, etc.). Essa vertente profunda do racismo não foi captada pela sociologia, mas pelos grandes artistas e escritores, uma vez que são fenômenos inconscientes, simbólicos e afetivos. Alguns desses criadores, como Guimarães Rosa e Nelson Rodrigues, eram reacionários, ou conservadores no plano político-ideológico, o que parece indicar, entre outras coisas, que direita e esquerda no Brasil partilham os mais importantes "mitos de fundação" do país, como, por exemplo, a crença geral de que negro rico não sofre preconceito. Anjo Negro é a demonstração contrária.A riqueza e o poder de Ismael são a origem da sua verdadeira danação: o ódio ao próprio nascimento, "Odiei minha mãe, porque nasci de cor". O incômodo que Anjo Negro causa no público, toda a vez que é re-encenado, é geral. Nem brancos nem negros gostam de "tratar disso" e os negros politizados (movimentos negros) não gostam de "tratar disso dessa forma". Que forma? Sem piedade nem hipocrisia. Em Anjo negro não apenas os brancos odeiam os negros, é um Grande Negro que odeia a si próprio e a todos os negros da face da terra. Eis o homem danado e solitário, de que falava Franz Fanon nos anos 1950

MALDITA MORTE

BENDITA LITERATURA
Depois de quase meio século de leituras, o que posso esperar de um livro? No mínimo que "o inesperado faça uma surpresa". E caso você seja daqueles que percebe em tal expectativa doses de ingenuidade, fico aqui a lamentar o seu equívoco.
O inesperado tanto pode estar ao lado como distante, muito distante. Encontrá-lo vai depender do talento dos editores que no mais das vezes optam pela comodidade da compra dos best-sellers d’além mar. Exemplo: perceberam que de uns tempos pra cá o fato de escritor tal ser português já é o bastante para merecer status de "grande?" Mas aqui na minha biblioteca essa banda não toca, mas não toca mesmo! E pelo visto também não toca pros lados da Bertrand Brasil, editora que corre na contra-mão da mesmice e com conhecimento de causa, ela publica Camilo José Cela, voltou seu olhar para a Espanha e de lá trouxe o surpreendente "Maldita Morte", de Fernando Royuela .
O inesperado em Maldita Morte surge na primeira frase, não há o menor desperdício nesse livro indispensável àqueles que ainda acreditam na literatura de qualidade e na necessidade que o homem tem de se emocionar. Parece exagero? Calma, tem mais, muito mais e se muito também aqui não direi é pensando em vocês, futuros leitores do livro, pois não quero privá-los das agradáveis surpresas que me assaltaram durante a leitura. Adianto apenas que o desfecho é obra de gênio. Duvido que vocês, chegando ao ponto final, não se sintam estimulados a recomeçar a leitura dessa grande obra literária.
O anão Gregório (também atende por Goyo, Goyto ou Gregori) é o protagonista, anfitrião e narrador. Ele acaba de receber uma visita em seus derradeiros dias. Goyo divide algumas semelhanças com o Jean-Baptiste Grenouille, desafortunado personagem principal de O Perfume, do alemão Patrick Suskind, aqui ressalto apenas a fascinação pelos perfumes, o fato de serem desprezados pelas respectivas mães e se Grenouille não tem cheiro, Goyo não passa de um anão deformado.
Antes porém de entrarmos na história propriamente dita, permita, caro leitor, breve exposição sobre o que caracteriza uma grande obra literária.
Ela obrigatoriamente precisa ser única, e, no caso, sequer a tradução a despoja dessa característica, outro aspecto é a capacidade de permitir um número incalculável de leituras, o que no entender de Umberto Eco a torna "aberta".
Dito isso voltemos ao anão Gregório que cresceu (aqui mera força de expressão) vítima da maldade, do escárnio e da brutalidade, inclusive de seu irmão, Tranquilino, enquanto este viveu, "Um trem de carga levou-lhe pela frente a primogenitura". Sua mãe acumulava funções em nome da sobrevivência e uma delas era a de prostituta. Como desgraça pouca é bobagem e provando que até o amor materno guarda lá suas limitações, Gregório acaba vendido ao dono de um circo que cumpria temporada na cidade. É justamente no circo que o anão gasta sua juventude expondo a bizarrice de sua condição em troca da mera garantia de sobrevivência. O circo também pode ser encarado como a metáfora da alienação que emana do capitalismo revelando o labirinto sombrio da sociedade, cada vez mais, de consumo.
Maldita Morte é o que se pode considerar um romance pós-moderno onde as fronteiras da ficção e História ( a história recente da Espanha) são apagadas em nome de uma evolução ou superação do alcance da linguagem. Parece simples? Podem crer, não é. É necessário que de tal amálgama resulte uma totalidade forte e sensível o bastante, a ponto de ensejar a reflexão do leitor e que a união dialética entre o que se passa no seu âmago e o que reside fora do homem, não seja desprezada. Para tanto Fernando Royuela convocou um exército de personagens incomuns, complexos, capazes de desfiar humor e drama na medida exata. Caso me fosse perguntado sobre o objeto do romance não teria a menor dúvida em apontar a vida e sua mais talentosa coadjuvante, a liberdade.
Maldita Morte é um romance desprovido de amor, o máximo que se pode identificar seria a sua intenção, no mais, eflúvios do desejo carnal e piedade. Sendo assim, podemos então identificar uma trama sombria? Ainda não, as doses de crueldade e contradições aproximam o enredo de uma realidade bem mais cínica e que, mesmo assim, teimamos em não considerá-la sombria.
Gregório está longe de ser ou parecer um herói, o máximo que consegue é granjear a comiseração do leitor, só do leitor porque ao longo da trama não lhe é destinada a menor migalha de amor ou mesmo solidariedade. Quando algo parecido com essa dependência recíproca aparece, não é nada mais que uma simples troca de favores onde o mais frágil sempre acaba perdendo.
Ciente de sua precariedade e de seus limites, Gregório não precisa determinar o sentido de sua vida, a seu ver ele já está traçado, no entanto, embora apenas verbalmente, o anão tenta ser um homem livre e faz do cinismo sua arma mortal.
Com ele na bagagem chega a Madri nos estertores do regime franquista e logo consegue a proteção de um chefe de gang de mendigos em troca da delação de comunistas. E é justamente investido na função de espião que Goyo encontrará aquela que lhe abrirá as portas da redenção, ou da liberdade como preferirem.
O anão é um personagem dos mais complexos e suas ações, nunca desprovidas de uma ambigüidade e de uma lógica particular, provocam no leitor reações de amor e repulsa como a lembrar que no íntimo, bem lá no fundo, somos todos quase iguais, embora alguns esbanjem talento e criatividade.
Para concluir,caro leitor, Maldita Morte é um dos melhores, senão o melhor, lançamento do ano e fiquemos na expectativa de que a Bertrand não tarde em lançar os títulos de Royuela ainda inéditos por essas plagas.
Como Gregório usa e abusa do cinismo para se defender, convém lembrar que estamos na época mais cínica do ano e na dúvida do que presentear, o faça com um exemplar desse livro que também vale por uma aula de teoria literária. Em se tratando de função poética da linguagem há muito que se aprender.
Confesso que foi difícil, mas se consegui me controlar até aqui não seria agora que revelaria o magistral desenlace dessa história que não tem fim.
Maldita Morte. Bendita Literatura!


TRECHO
"Ao longo da minha vida conheci uma infinidade de filhos-da-puta e a nenhum desejei uma morte ruim. Com você não vou fazer uma exceção. O ser humano perdura pelo mundo sem se dar conta da tragédia que o aguarda. Uns inventam deuses para remediar a angústia, outros, ao contrário, atendem ao imediatismo do prazer para afugentar o inevitável, mas todos no final são medidos pela rigorosa igualdade da extinção. Eu já estava advertido do fim, mas jamais pensei que fosse acontecer dessa maneira.
Sei a que veio, mas não importa. Nunca até agora tinha me enfrentado com a certeza de deixar de existir, e por isso sua presença, antes de me atemorizar, deprecia-me. Agora compreendo que minha existência tenha estado encaminhada desde o princípio para nosso encontro; que meus passos estivessem condenados até este instante, que não me fosse possível escapar ao meu destino por mais que pretendesse absurdamente, que ninguém, nem sequer os entes queridos, jamais irão chorar minha perda. Sei que você veio para se regozijar com o espetáculo de minha morte, constatei-o na ferrugem dos seus olhos, no limo de sua curiosidade, mas já não temo a inexistência."


TRECHO
"Merda de vida", exclamou o ex-presidiário quando terminou com o prato, "uns buscando um amo a quem servir sem pensar e outros em busca da liberdade para poder pensar e não servir". Aquelas palavras tiveram o efeito de sacudir minha inteligência como um choque de honradez e por elas me apercebi de que na espécie humana, embora totalmente inútil, podia haver também um fio de grandeza que transcendia a mera subsistência cotidiana; um desejo impossível por encontrar a localização da justiça e atém mesmo por praticá-la, uma vontade não cultivada de socorrer os semelhantes sob o lema de igualdade e fraternidade, que em virtude de complexos passes de mágica não desaguavam em proveito próprio. Acaba de descobrir o franciscanismo laico dos marxistas, um pensamento belo e impossível que logo haveria de mudar novamente o curso de minha existência e impulsioná-la, como se ainda fosse possível, pelos terrenos da demagogia, da farsa e do interesse."

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

MINÚSCULOS ASSASSINATOS E ALGUNS COPOS DE LEITE

MINÚSCULOS ASSASSINATOS E ALGUNS COPOS DE LEITE
Parece mentira, mas não é difícil encontrar quem coloque a literatura na estante das coisas sublimes. Daí para definir que só pode merecer o título de escritor aquele ser que escreve nas madrugadas em companhia de álcool e fumo, é um passo; ou um parágrafo. O tal escritor tem que, acima de tudo, demonstrar que sofre, se acrescentar humor em seu texto não merecerá crédito. Será mais um metido a engraçadinho. E literatura, segundo a crescente horda que ainda pensa desse modo, não é cenário para humor. Pois bem, diante disso não é de espantar o preconceito com escritores oriundos dos blogs, afinal de contas esse pessoal costuma esbanjar bom humor.
Também não vou negar que, fruto dos blogs ou não, 99% do que é publicado não vale nada.
Dito isso vamos ao que de fato interessa, o livro de Fal Azevedo - minúsculos assassinatos e alguns copos de leite - convém lembrar que a autora mantém um dos mais visitados blogs. Como diria minha filha, preconceituoso leitor, “nada a ver.” Nada a ver no que diz respeito a ser bom ou não, mas tudo a ver no que concerne à prática da escrita. Não importa onde “neguinho” pratique, se no blog, no papel, ou na areia do mar,mas preconceito está sempre na ordem do dia e narizes se torcerão ao saber que uma grande editora, a Rocco,apostou no talento da Fal. Ficha catalográfica:indicação editorial e preparação de originais Anna Buarque. Não sei se a Rocco quis lavar as mãos transferindo a responsabilidade ou se foi tamanha a certeza na qualidade que levou Anna a assumir essa aposta. Seja lá o que isso signifique parabéns ao olho “mágico” de Anna Buarque.
É isso mesmo, o livro é surpreendente, de fácil leitura, sem que isso signifique superficialidade, muito pelo contrário, o conteúdo é corrosivo, e pasme, você novamente preconceituoso leitor, conduz à reflexão. Esse é um dos tópicos a se avaliar a boa literatura, se conduz ou não à reflexão.
Alma, 44 anos, artista plástica, é a narradora de minúsculos assassinatos e alguns copos de leite; esbanja sensibilidade e humor para tratar, acima de tudo, da morte. A morte além de uma presença; uma tentação. E essa relação da palavra com a morte é um dos aspectos mais valiosos nesse livro de Fal Azevedo. Alma perde a irmã, o pai,o padrasto, a filha, porém mais importante e significativo que a morte é o período seguinte, aquele que nos faz ansiar por uma volta no tempo. Ouça Alma, paciente leitor: “Quando minha filha nasceu , eu não gostava dela. Eu tinha 32 anos e não gostava de ninguém. Ela era feia e enrugada e chorava. Deus, como ela chorava. Eu não sabia o que fazer com ela nem como fazê-la parar de chorar. Eu não sabia como amá-la. Eu não a queria no meu colo.
Filha enterrada,novamente Alma com a palavra: “Se eu fui uma boa mãe? Eu fui a mãe que pude ser, que soube ser, não a que ela merecia, como todas c as mães que conheço,quer elas admitam ou não.Não fiz o suficiente.Nunca. Eu poderia tê-la beijado mais,sido mais paciente, acordado mais cedo, lido mais histórias e brincado mais de casinha. Eu deveria ter sorrido mais e dado mais colo, ao invés de ter as minhas ressacas mal-humoradas todas as manhãs. Era minha obrigação fazer daquela menina uma menina feliz,Era minha obrigação fazer seu mundo mais seguro. E eu falhei.”
O que nos resta após um sepultamento? No mais das vezes, a culpa.
Morte e culpa, convenhamos, não são ingredientes dos mais festivos. Não estivessem sob o talento de Fal Azevedo o produto na certa traria o perfume da amargura.
Alma é torturada pelas lembranças e a dualidade romanticonaturalista se faz notar ante as reflexões da narradora que deixa transparecer estar ciente de que a visão do ser humano há de ser sempre uma visão da crise. Sabe também que tanto causa como efeito de todas as tragédias dependem da ação do homem. E a lâmina dessa certeza fustiga Alma do inicio ao fim de minúsculos assassinatos e alguns copos de leite.
A obra de Fal Azevedo permite refletir sobre variado conjunto de temas, estes vão do literário até o político;da valorização sensível e critica das coisas de um modo geral até uma consciência delicada e complexa a respeito da condição humana, constantemente a mercê da paixão.
Densa, bem humorada, tensa e sombria, sem que isso signifique depressiva, a narrativa de Fal Azevedo. A leitura de minúsculos assassinatos e alguns copos de leite é um passeio em noite de lua cheia com alguns relâmpagos, como os que seguem, onde pensamento e prosa se unem e beiram o aforismo.
“Meu pai se sentia tão desprotegido quanto um lobo sozinho. Freud teria adorado a família toda, isso sim.”
“Vi o bebê no berçário, tive uma crise de choro, e disse que não queria morar com ela.”
“Chorei até esquecer por que eu chorava.E daí, comecei a chorar de novo.”
“Um dia eu vou fazer sentido.”
“Os bárbaros não queriam destruir Roma, meu Deus do céu. Eles queriam ser romanos. E isso muda tudo.”
Fal ouviu Pound: “sugerir o máximo dizendo o mínimo.”
Impossível o leitor não se deixar invadir pela tristeza, uma tristeza de história em quadrinhos, uma tristeza inevitável, mas que na página seguinte poderá se transformar, não arrisco em alegria, mas em mansidão sem dúvida. A tristeza que Fal apresenta ao leitor não é de assustar, é nossa tristeza do dia a dia, a inevitável, desde que não se trate de um idiota ou quem sabe um débil mental.
Não se percebe o onírico na narrativa de Fal, mas a denúncia, a fantasia, a inquietação, as turbulências advindas do risco de tentar combater as situações comuns do nosso dia a dia. Fal Azevedo afronta o senso comum, se exige o riso, não tolera o riso excessivo nessa nossa interminável morte que é o viver.
É isso, agora vou pesquisar blogs.



Luíz Horácio