terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

VERBETE

"Prasempre!" Desde que escutei pela primeira vez,a sonoridade me pareceu pouco nítida para não dizer completamente fora do foco da realidade. Dia desses, uma mulher me perguntou se eu seria capaz de amá-la prasempre, e eu, assim como os demais de nós, homens supostamente intelectualizados e temerosos de nossos sentimentos, busquei aquela saída convencional dizendo que sempre é algo muito distante. Muito além do alcance humano. No entanto ela disse que me queria prasempre, foi quando me dei conta que também a queria com igual intenção e que não era nenhuma desonra confessar tal aspiração. Daí em diante a preocupação passou a ser outra: "como construir o prasempre?" Decididamente não seria com o mesmo material utilizado por muitos de meus conhecidos. Como fazer? Resolvi então que a partir da certeza do meu amor por essa mulher e das sensações incomparáveis que ela me causa, se tornava óbvio objetivar a continuidade do prazer. Exemplo eu tinha. Quando garoto meu professor de literatura escreveu duas frases-dedicatórias num exemplar de livro seu. Professor e frases estão em mim.Prasempre. No frigir dos ovos somos todos egoístas e tudo que buscamos é com a intenção de que seja prasempre. Que o automóvel não enferruje, que o vaso jamais quebre, que as fotografias nunca se apaguem e aqueles que amamos estejam sempre a nossa disposição. Poucos admitem, mas a verdade é essa. Logo cedo percebi a morte, o fim, isso num primeiro momento me abalou, me derrotou, por que continuar um jogo com o resultado previamente estabelecido onde todos perdem e o grande adversário invisível acumula regozijos cínicos? Minha infância foi a tentativa de evitar e depois compreender o veneno anti-ético da morte. Meu pai, minha mãe, meus irmãos, meus amigos, um dia todos desapareceriam assim como já acontecera com meu gato, com meu cachorro de estimação e meus passarinhos. Minha assustada meninice me postava entre dois extremos: um de onde mal eu tinha saído e outro que jamais seria alcançado. Porém como quase toda criança, no meu caso com um pouco mais de dor, conseguia deixar de lado os pensamentos comprometidos com a realidade e junto com meus amigos visitava o jardim das fantasias. Cresci e optei pelo mundo da minha imaginação. Sua existência dependia de mim, se eu tinha os planos era por que a construção era viável. Meu objetivo era trapacear, enganar a morte, desviá-la daqueles que eu queria bem, que na verdade guardavam pedaços meus e se morressem, eu morreria também. Se a fantasia não me impediu de sofrer pelo menos me fez entender que algumas coisas podem ser prasempre. E só pode ser pra sempre tudo aquilo que não exigir espaço. Mas o prasempre é algo que não surge livre da dor, infelizmente. Foi assim com meu professor, foi assim com outras poucas coisas e está sendo assim com meu amor. Falo de meu grande amor que foi precedido da minha dor e solidão frutos ácidos da autodepreciação e preguiça de acreditar na fantasia. A solidão é um artifício muito utilizado pelos covardes da minha laia. Nos escondemos, congelamos nossa afetividade e se não amamos não corremos o risco da rejeição, da perda, da frustração. E assim permitimos o tempo andar sobre nós. Até um dia... O dia em que percebemos que podemos permanecer assim prasempre. Sem dor, sem medo, imóveis. Como as pedras. A pedra escondida é a materialização do prasempre, pior, muito pior que estátua. Minha fantasia exige movimento e eu não sabia, talvez por isso me doesse tanto estar parado. Pouco importando se frente ao mar ou deserto.
Em certo entardecer meu mundo começou a rodar no sentido oposto. Fazia frio e alguém acendeu a luz, meus amigos e parentes continuavam morrendo, normal quando a infância é um carrinho distante virado de rodas pro ar no marco zero de minha caminhada. Normal, porém triste. E naquele dia eu vi a mulher que também me viu. Alguns dias se sucederam até revê-la e então trocamos algumas palavras, o suficiente para eu me dar conta que desde minha infância sonhava com uma mulher como aquela. Hoje o sonho é também meu despertar e quando sofro é simplesmente por que ela não está comigo. E como sofro!!!! Nunca amei assim, nunca sofri tanto assim. E se digo isso é para comprovar que esse é meu amor definitivo. Se é definitivo significa que é prasempre? A pergunta se justifica embora nem sempre o definitivo represente o prasempre . Ainda mais em se tratando de amor, pois o que é o amor? Amor é aquilo que não sobrevive individualmente. Sendo o amor o mais dissimulado dos sentimentos é também o terreno preferido do prasempre pois não é raro o amor se apresentar com a maquilagem da ilusão. Ex. Quando um afirma amar prasempre na intenção de obter alguma vantagem ou mera manutenção de algo que o satisfaz. A individualidade tentando dominar aquilo que ela acredita ser amor e, no entanto é um mero exercício de violência. Contra seus próprios sentimentos e contra o outro. O amor nunca é prasempre visto que é vivo e tudo que é vivo precisa morrer. Mas o que me interessa é o mundo da fantasia e da minha imaginação o que me leva a acreditar num amor imortal. É isso. Não eu não tenho 17 anos, tenho muito mais e não acredito em nada, nada mesmo que não seja produto da fantasia, do imaginado, do sonhado. Eu sempre sonhei com essa mulher, eu não sabia, mas era ela, não havia a definição de um rosto e podia ser qualquer rosto mas era ela , o sonho naqueles dias de meninice já era sonhado, não eu não tenho 17 anos, tenho muito mais e acredito no meu sonho, um sonho prasempre.Mas acreditar não basta é preciso viver a realidade com fantasia, fazer da vida, da minha vida, um sonho bom. Mas que não me obrigue a despertar na melhor parte. Viver é preencher o álbum dos acontecimentos. E só merece esse título aquilo que transforma. Um acontecimento pode ser o desabrochar de uma rosa, caso eu presenciasse, o passarinho rompendo a casca do ovo sob meu olhar. No entanto isso nunca aconteceu, quando eu chego eles já estão lá, a rosa e seu perfume, o pássaro e seu canto. Na minha vida foram raros os acontecimentos, nascimento e morte de filhos, duas ou três amizades, alguns livros e um entardecer de Abril.Agora me atrevo a dizer que descobri o significado do "prasempre". Prasempre é simplesmente a vontade de estar bem e eu quero confessar aqui diante de todos vocês que de uns tempos pra cá só me sinto bem junto dessa mulher. Dia desses recebi alguns elogios e contei ao meu pai, ontem uma atriz famosa pediu um texto meu e contei o fato para o Marcelo, para o Ronaldo, minha vida não vale nada se eu não transmitir às pessoas que amo um pouco de alegria, é uma dívida sendo amortizada, pois não consigo ver muita graça em mim, se não fossem meus amigos, meu pai, meus filhos...não sei.Cedo, muito cedo, me dei conta que eu era apenas um fragmento. Daí a acreditar que o fragmento era do nada, um pó do futuro não foi preciso muita reflexão, confesso. Pai, amigos, filhos me mantinham num permanente recreio, por um tempo eles foram suficientes, mas tudo tem um limite, o abismo me aguardava e eu, covarde, apenas olhava. Até que surgiu essa mulher e hoje, sem afobação, posso amar muito mais a todos que me amam e aqueles que não são amados por ninguém. Já não me sinto um grão do nada, mas um pedregulho do amor.Rejane, eu te amo prasempre.

RELATIVISMO E IMAGINAÇÃO

RELATIVISMO E IMAGINAÇÃO
OU AMOR, DEUSES, MORTE E UMA PITADA DE INVEJA
A incapacidade de se conhecer o mundo segundo a conclusão do ceticismo bem como afirmar que a compreensão do mundo é resultado de um ponto de vista particular concluindo desse modo que não há nenhuma perspectiva universal sobre o mundo. Optar por uma das correntes é arcar com o ônus de uma argumentação infindável. Mesmo assim arrisco algumas considerações lançando mão de certas “muletas” intimas do ser humano.
A mais notória, sem dúvida, a religião; e a seguir, a morte que por incrível que pareça não é difícil encontrar quem a aceite como relativa. Tanto na religião como na morte acusamos a presença do sagrado, a união do visível com o invisível, do inquestionável segundo os religiosos , inclua-se aí os espíritas pois eles prioritariamente unem a natureza e o sobrenatural.
Antes de prosseguir vale dizer que defender o relativismo não parece tarefa das mais árduas, visto que a tudo se pode relativizar, ao percebermos que tanto morte como o possível Deus também podem ser relativizados,, o que nos resta? Desse modo os ódios podem ser amenizados e os amores também permitem um certo embrutecimento, do território de ninguém podemos avistar o território de todos, do vale tudo? E onde fica o amor desinteressado dos gregos, que significava fato de se alegrar com a simples existência do outro?
O que fazer frente a tantas opções que não levam a uma conclusão plenamente satisfatória?
Partimos pois do sagrado. O que é o sagrado ? É a união do terreno, do humano, com o além. Um ser, dotado de poderes sobrenaturais, católicos o identificam nas imagens, madeira, gesso,ferro, pouco importa,Deus está ali, da mesma forma,, para o catolicismo,Deus também habita a pequena hóstia.
Artistas, os mais midiáticos entenda-se, também lhes são concedidos centelhas do sagrado pela admiração popular, são considerados seres “iluminados, abençoados, fenômenos”.
Quem de nós não ouviu que “a vida é sagrada”? É? Mas que vida, a humana tão somente? Por quê? Não matarás se aplica exclusivamente à vida humana? No entanto, mata-se? Donde deduz-se que o “não matarás” também é relativo. É?
E se temos o sagrado, tudo o mais é profano? Não creio na necessidade desses antagonismos, nessa polarização, mas se não é assim, então como ficamos? Simples, tudo é relativo.
O sagrado é relativo, Deus é relativo e viver e morrer também podem ser relativos. Tudo depende.Entre os gregos não havia deus, mas não lhes faltava divindade, entenda-se como divindade a harmonia cósmica, uma forma de transcendência. No livro VI de A República, Platão nos fala do divino e não dos deuses. Kant, por sua vez, na última parte de Critica da Razão Prática lança mão do religioso, fala dos valores transcendentais.
O homem inventou Deus , e depois? Acreditou. Lembro de Voltaire “Deus criou o homem à sua imagem e este lhe pagou na mesma moeda.”
Enfim, tudo vai depender da crença, e onde há crença a informação pode ser duvidosa, ou seria relativa?,quem entende relativa a morte deve entender relativa também a vida e vice versa. Quem assim age em relação ao sagrado opera o mesmo com o profano. O que nos resta fazer? Tirar um pouco de sagrado do sagrado e um pouco de profano do profano? Religião e superstição, inseparáveis?
Amenizar todos os discursos? A opinião sensata seria não emitir opinião?
Sagrado, Deus, vida e morte, se discordo veementemente da relativização dos referidos temas, também sou forçado a aceitar o senso comum que indeciso entre o egoísmo e a covardia inventa seus desvios na busca vã do cálice da eternidade. Lamentável! Lamentável pois o núcleo antropológico que alimenta e sustenta o religioso tende a se perpetuar. O religioso e o divino, o divino que transcende a moral, que transcende a religião, pode ser uma alternativa, mas ao tratarmos dessa forma, não estaríamos operando com o relativismo?
Enfim, tudo é relativo. Seria mesmo? Talvez.
Vejamos o amor. O que é o amor? Amor é reencontro, digamos. Mas se temos A necessariamente teremos B a fazer-lhe contraponto. Logo teremos o mal. O que é o mal? A negação. Quem sabe?Percebemos o mal à primeira vista, e o amor? Esse não. Amor é a arte do reencontro. Os grandes amores não acontecem à primeira vista, conforme afirma Michel Serres. É do esquecimento do primeiro encontro que surgirá o amor. E o mal,de onde brotaria? Da inexistência do reencontro? Bem, aí é relativo. Tem gente que nasce predisposta ao mal afirmam certos estudos, até que ponto confiáveis não sei.
Mas digamos que o amor e o mal sejam relativos, como interpretar a atitude de um estudante americano que dispara contra seus colegas de escola?
Como entender aquele homem que aos cinqüenta anos vive o amor que imaginou na infância? E esse amor é exatamente o fruto de um reencontro, sentimento que se mantivera virgem por duas décadas? Isso daria razão à tese de Michel Serres , na verdade o amor à primeira vista é prerrogativa da ficção, da literatura, do cinema?
Se levarmos em conta que o amor do homem de cinqüenta anos também é fruto da sua imaginação, da persistência da sua imaginação, podemos concluir que ambas possibilidades podem se estabelecer ou não, e sendo assim tanto a origem do amor quanto a do mal, são relativas.
Até aqui usamos o relativismo para tratar dos enunciados, ainda não tratamos das inevitáveis conseqüências.
Para não nos alongarmos muito, nos limitaremos a questão do mal. O mal relativo. Pode? Quem sabe?
A guerra, por exemplo, pode ser relativa? Se é relativa admite o bem e o mal. É óbvio que para a indústria armamentista é um bem, mas para o soldado recrutado independente de suas convicções, não passa de um transtorno, um abuso de autoridade que pode custar-lhe a vida, não sem antes obrigá-lo a dispor de inúmeras outras caso pretenda se manter vivo.
Visto por todos os ângulos possíveis o relativismo nos parece uma opção ou uma orientação bastante cômoda quando na sustentação de determinados pontos de vista. É quase como tentar descobrir quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha. Vai depender de a quem interessar ser um ou outro naquele exato momento.
Para concluir busco socorro no homem de cinqüenta anos, ele não crê em deuses, sabe -se concessão da morte, não faz relativo seu amor e respeita sua imaginação. Esse homem de vez em quando voa. Solitariamente para não provocar inveja.
E por falar em inveja, ela aceita o relativismo?


Luíz Horácio

TERMINAMOS MAL,FAUSTO WOLFF

TERMINAMOS MAL, FAUSTO WOLFF


“Começamos mal, Luíz Horácio.” Essas foram as primeiras palavras que Fausto Wolff me destinou graças ao meu atraso de dez minutos para uma entrevista marcada por telefone.
A seguir quis saber das razões do meu interesse em entrevistá-lo e quais informações a seu respeito eu trazia.
Disse-lhe que tanto me interessava sua obra como suas posições pessoais. “Mas o que dizem de mim, que tipos de informações você recebeu?” Com a sinceridade temerosa respondi: “Disseram que você é a pessoa mais grosseira do Rio de Janeiro, um jogador, um viciado, mais fácil marcar entrevista no jóquei, e bêbado.”
Encheu um copo com uísque e gelo e começamos a entrevista. Tensa a princípio, ele parecia contrariado, prazerosa logo a seguir.
Ao terminarmos a garrafa de uísque jazia sem utilidade. Nos despedimos e antes que eu alcançasse a porta de seu apartamento em Copacabana ele me chamou: “Espera! E agora o que você tem a dizer a meu respeito?” Novamente assaltado pela sinceridade temerosa, respondi; “ Digo que você é bêbado apenas”. E nos abraçamos num abraço que ainda hoje me envolve.
Assim era o Fausto que me permitiu várias palavras, algumas nas orelhas de dois de seus livros; Um lobo atrás do espelho e A milésima segunda noite. A meu respeito disse algumas frases no Pasquim e no JB, lembro que na época, eu vivia meu terceiro casamento, disse a minha mulher que colocaria num quadro, e ela: “deixa de bobagem, pra que tanta vaidade?”Os jornais estão comigo. Vivo meu quarto e derradeiro casamento e já mandei emoldurar os jornais. Em meu primeiro romance, Perciliana e o pássaro com alma de cão, está um dos maiores presentes que Fausto me deu, o prefácio, mas eu, aluno torto, abusei e o transformei em personagem desse mesmo romance. Ele nunca reclamou.
Um dia, eu queria guardar aquele Fausto para mim, decidi gravar um documentário com ele, sobre ele. Coincidentemente demos inicio a gravação em 01/08/2003, aniversário de dez anos de minha filha Thamara. Dias antes ao perguntar o que ela queria de presente, respondeu: “quero um presente vivo”. Imaginei um ramster. “pai, ramster é coisa de viado” Um presente vivo, logo me veio uma tartaruga, eram vendidas na Siqueira Campos entre Tonelero e Barata Ribeiro. “Cara, não vai me dar uma tartaruga, tartaruga nunca vale quando se examina possibilidades.Tartaruga é um tijolo atrevido, um tijolo com excesso de personalidade, não é um bicho.”
Antes da hora marcada estávamos no Fausto, ou melhor, o encontramos quando entrava num táxi, pegamos carona, chegamos juntos. No elevador ele perguntou a idade de Thamara e ela informou que naquele dia completava dez anos. “Então temos que comemorar”.
Enquanto gravávamos Thamara dividia sua atenção entre os potes e potes de sorvete e o olhar atento ao Fausto. Naquela manhã /tarde todos nós tivemos uma grande aula de sinceridade, acima de tudo. Terminada a gravação, minha filha mereceu ainda mais atenção de Fausto. Ele pedira a Cláudia, sua incansável secretária, que providenciasse um bolo. E o bolo foi providenciado, como vela e o parabéns que o coro dos desafinados cometeu.“Cara este é o meu melhor aniversário” ouvi de minha filha enquanto nossas lágrimas escorriam.
E Fausto inventou uma desculpa para se afastar da sala e “fugiu” pelos fundos, tinha um páreo que ele não podia perder.Foi Cláudia que informou: “Seu Fausto pede desculpas, foi ao jóquei, disse que não se despediu porque não agüentaria, mas fiquem à vontade, dona Mônica já ligou, está chegando.”
Saímos e logo paramos no bar Lucas, na Av. Atlântica; Marcelo, Nina, Saraiva,Santarosa, Luciano, Tanussi, foi lá que Thamara falou: “Obrigado, pai. Foi o presente mais vivo que você podia ter me dado.” Ela se enganava, aquele presente não fora dado por mim, era obra da amizade.
E assim era Fausto , não apenas com minha filha, mas com todas as crianças.
E agora Fausto? Lembra que no final de 2006 você me chamou de traidor porque você não identificava entre seus e-mails um conto que eu enviara repetidas vezes, lembra? Pois é, você me chamou de traidor e quis saber se o que eu queria era grana, lembra? E por isso deixei de procurá-lo por mais de ano? Não sou bêbado, mas você sequer desconfiava que ainda sou muito mais burro que você. Pois é Fausto, chegou a minha vez de acusá-lo de traição. Você me traiu, Fausto, que merda Fausto, nunca é hora de morrer Fausto, porra Fausto!
Confesso: não tenho traços de espiritualidade e não acredito em vida depois da morte. Morreu acabou, uma merda, mas é assim. Ontem uma amiga escreveu para mim dizendo que Fausto tinha nos deixado, detesto esses eufemismos. Fausto não nos deixou, Fausto morreu. Alguma coisa matou o Fausto.
O Fausto que me deu de presente um time de pessoas que fazem a vida valer a pena, talvez eu esqueça alguns, agora lembro do Marcelo Backes e a Nina, do Ziraldo, do André Seffrin, do Luís Pimentel, da Rosemary Alves, a Rose da Bertrand e seu filho Rafael, do Jean Scharlau, da Mariana Roiler, do Renato da ed.Revan, do Antonio Lobo, do Chico Caruso, da Denise da Toscographic. Não preciso incluir a Mônica, antes de ser mulher do Fausto, a fada que o protegia.
Fausto gostava de reunir seus amigos em seu amplo apartamento da Atlântica, certa vez, casa lotada, antes do seu primeiro discurso; geralmente ele proferia três, mandou essa: “Que maravilha, tanta gente e nenhum filho da puta!”
Mas o que era um filho da puta para o Fausto? Todo aquele que desrespeitasse o ser humano, sobretudo os mais humildes.
Fausto também assustava, gerava antipatia, sobretudo naqueles que não o conheciam muito bem. Assim se deu com um casal de amigos, o Ronaldo Amaral e a Marília, que convidei para comemorar uma passagem de ano no apartamento de Fausto. Lá pelas tantas Fausto, sério e bêbado, deu uma ordem e disse que todos teriam de obedecer pois ele estava pagando tudo. Brincadeira que meu amigo não entendeu assim e aqui publicamente peço desculpas em nome do Fausto.Mas quem de seus amigos não teve de um dia pedir desculpas em nome do Fausto? Fausto nos colocava em seu barco, ser amigo de Fausto sempre teve seus prós e seus contras, mas era daquelas pessoas que eu gostaria que morassem no ap. ao lado do meu, assim como meu pai e meus filhos.
Por um tempo fundamental em minha formação de escritor e de homem, trabalhei como seu secretário. Costumava chegar por volta de oito horas e já encontrava o Fausto escrevendo, sem camisa, só de cuecas “ao lado do mar” de Copacabana. E para quem não sabe ou desconfiava do contrário, revelo;o Fausto não bebia uma gota de álcool enquanto escrevia. Nessa época quando escrevia Olympia que fiz, com ele, meu curso de Literatura . O da universidade não acrescentou nado ao que meu pai e Fausto já tinham me ensinado.
Por volta de meio-dia ele parava de escrever e me chamava: “Meu filho, quer ouvir?” E lia a sua produção. Perdi as contas de quantas vezes chorei ouvindo Fausto.
É por tudo isso, Fausto, que “to puto contigo”, traidor, fujão. Você traiu a mim, Thamara, Mônica e mais uma porrada de amigos, não tínhamos combinado essa palhaçada de você morrer.
“Terminamos mal, Fausto Wolff!”
Mas você se engana, não serão essas minhas últimas palavras para você, prometo incomodá-lo até enquanto essa maldita morte não me transformar também num traidor.
Eu te amo Fausto Wolff. Sempre te amei.
Ia esquecendo; quando eu lia O lobo atrás do espelho ainda no disquete e me emocionava liguei para o Fausto para saber como ler chorando. Agora, Fausto, queria ligar para perguntar a você como escrever chorando. Não foi fácil, Fausto, você me paga...
Luíz Horácio

QUEM AMA LITERATURA NÃO ESTUDA LITERATURA

QUEM AMA LITERATURA NÃO ESTUDA LITERATURA
Quem ama literatura não estuda literatura – ensaios indisciplinados é um livro despretensioso, porém de suma importância com uma mínima ressalva. O autor parte da literatura para o cotidiano e também faz o caminho inverso sem atropelos, um deleite para o leitor.O título Quem ama literatura não estuda literatura pode, num primeiro momento, parecer estratégia de marketing, objetivo principal: chamar atenção e depois, quem sabe, entrar no mérito. A publicidade, é importante dizer, não entra. Joel Rufino dos Santos soube montar sua equipe, reuniu personagens, reais ou imaginários: Darwin, Marx, Napoleão, o dr. Cláudio de O ateneu e o Ismael de Anjo negro e deu um nó no senso comum acadêmico, literário ou o que quer que remeta a repetição de informações, terreno onde os professores universitários, a maioria, adora se movimentar. É nesse lodaçal que eles "brilham" analisando obras que só eles leram e definem o que é bom e o que é execrável. Sim, execrável, para eles não existe meio termo. Quem ama... é a despedida de Joel Rufino das salas de aula, no entanto no transcorrer da leitura (da aula?) o leitor atento perceberá não uma despedida, mas um convite ao conhecimento.
Diferentemente do que costuma ocorrer com seus colegas, Joel não puxa a brasa apenas para o seu assado, não faz da literatura algo sublime, muito pelo contrário, a expõe, examina sua função e suposta utilidade, eliminando assim qualquer possibilidade de glamour em torno dessa arte. Fez com que recordasse de recente entrevista de nosso colega Luiz Paulo Faccioli : "o compromisso primordial que o escritor tem para com a sociedade é o de produzir literatura."
Mas isso é óbvio você pode pensar apressado leitor das superfícies, lógico, ainda não sabe que o óbvio é o mais difícil de ser explicado e, no seu caso, assimilado. Tão óbvio o rigor de Luiz Paulo para com a literatura o que nos leva a lamentar que tal obviedade não ocorra em outras profissões, como a medicina, os profissionais do futebol, para não nos alastrarmos pelo vasto terreno dos charlatões.
Mas voltemos a Quem ama... e sua singela abordagem das relevâncias literárias e culturais de modo geral.
Ainda me socorrendo da frase de Luiz Paulo e diante da quantidade cada vez maior da rala literatura contemporânea onde os pseudos escritores não produzem literatura e sim frágeis boletins de ocorrência, meu amor se faz a cada dia mais frágil.
Não sei ao certo se amo a literatura, antes preciso definir se é ela que me faz sofrer ou se é por meio dela que extravaso meus sofrimentos, o certo é que para amar literatura é necessário que "neguinho" tenha um quê acentuado de masoquismo. No cenário atual onde os escritores conseguem fazer literatura sem que o pensamento seja refém da emoção, amar significa correr risco ou a certeza do aborrecimento. Estranhou, inculto leitor, pensamento e emoção? Saiba então que o pensamento que atua na literatura é a emoção sistematizada, emoção que foge ao habitual, até alcançar dignidade e convicção. Entendeu? Não? Quer dizer que a razão não é o bastante para escrever um grande romance. Ah agora foi! É isso, e quando amar se torna difícil estudar passa a ser castigo. Em nosso ofício de resenhistas e o particular de professor somos forçados a estudar e o caminho único é aprofundar a leitura dos clássicos, sempre. Joel Rufino traz Dostoievski, Nelson Rodrigues, Lima Barreto,Freud, Balzac, Raul Pompéia, Alejo Carpentier, e fura o cânone ao não justificar seus pontos de vista com Machado de Assis, no entanto dispensa a Lima Barreto atenção mais que merecida e exagera ao creditar a Nelson Rodrigues responsabilidades sociológicas e antropológicas. Atenção novamente você apressado e espírito suíno leitor, as conclusões acima são de inteira responsabilidade e risco deste aprendiz.
Aproveitando a deixa , impossível não destacar o esclarecedor e imperdível estudo sobre a análise do trabalho a partir de O Capital do imprescindível Marx. Didatismo na dosagem exata, estímulo à curiosidade de todo universitário não tão alienado. Vale o livro
Quem ama...traz quatro ensaios Perturbadores do Sono do Mundo; Madalena, ou a falsidade da Literatura; Quem ama mata e Nos arredores do NorteShopping de fio condutor comum, porém com temática bastante diversa o que dispersa a atenção do leitor, se no primeiro Joel é muito mais sociólogo, dos melhores é bom que se diga; no segundo faz uma análise, distanciada até onde o possível lhe permite; da literatura e do fazer literário, no terceiro Joel parte do parricídio cometido por Suzane von Richthofen e segue por detalhada exegese da peça Anjo Negro do superestimado Nelson Rodrigues, deixando clara a perda de fôlego do autor que fecha o volume com seu quarto ensaio, o mais frágil, apesar da imperdível e irônica, no que isso possa ter de melhor, abordagem da obra e autor Lima Barreto.
Quem ama literatura não estuda literatura, o título que despertou a atenção do curioso leitor ao final da leitura se tornará algo de menor importância tamanha a qualidade de informações que o autor apresenta ao longo dos 3 primeiros ensaios principalmente. O quarto, se não chega a manchar o volume também pouco acrescenta e faz com que o autor sucumba a execrável norma vigente de a tudo relacionar com a contemporaneidade, com o pós-moderno e aí cabe tudo, Collor, TV, a frase preferida do tosco de nove dedos "nunca na história desse país...", a nefasta e gasta questão: novela de tv é literatura? A essa pergunta que Joel formulou como provocação a seus alunos peço licença para agregar uma outra tão relevante quanto: novela de rádio é literatura?
Antes de encerrar permita, quase comovido leitor, uma breve reflexão suscitada por Joel após leitura das páginas iniciais onde ele aborda a utilidade da literatura.
O que, de fato, constitui a literatura? Se o que constitui uma coisa é, basicamente, a sua função, a literatura se constitui, em primeiro lugar, de inutilidades. Muitos escritores – entre eles Jorge Luis Borges – deram esta definição de seu ofício: a literatura não serve para nada.:
Depois de reler o trecho hoje pela manhã, recebi o telefonema de uma mulher, querida deste aprendiz, se despedindo...para sempre. Olhei minha montanha de livros e chorei. Não sei quem desligou o telefone, a literatura tem um compromisso com o trágico, gostaria que pelo menos servisse para destruir a dor, a solidão e o nada que me invadiu após o telefonema.
Seja o que for sou forçado a concordar com George Steiner quando diz que " a critica de literatura procede da falta de amor." E esvaziado de amor enveredei pela leitura de Quem ama literatura não estuda literatura e cheguei ao seu final apaixonado pela busca de um conhecimento cada vez maior.
Encerramos lembrando Quixote, surrado e apedrejado por persistir em suas ilusões- por que ele nos comove até as lágrimas ,por que ele nos acompanha, por que nos sugere que esta vida faz sentido no final das contas, a despeito de tudo.
Obrigado Joel, perdoe Luiz Paulo por me apropriar da frase sem pedir licença.
Luíz Horácio







TRECHO
O racismo e sua forma benigna, o preconceito racial, têm algo em comum: ambos se enraízam na psique sob a forma de esquizofrenia – uma repartição da mente com a conseqüente substituição da realidade pelo delírio. Assim, por exemplo, o brasileiro rejeita o negro, sendo ele próprio a síntese de negro, branco e índio; e substitui o negro real pela idealização do negro (sujo, sensual, burro, etc.). Essa vertente profunda do racismo não foi captada pela sociologia, mas pelos grandes artistas e escritores, uma vez que são fenômenos inconscientes, simbólicos e afetivos. Alguns desses criadores, como Guimarães Rosa e Nelson Rodrigues, eram reacionários, ou conservadores no plano político-ideológico, o que parece indicar, entre outras coisas, que direita e esquerda no Brasil partilham os mais importantes "mitos de fundação" do país, como, por exemplo, a crença geral de que negro rico não sofre preconceito. Anjo Negro é a demonstração contrária.A riqueza e o poder de Ismael são a origem da sua verdadeira danação: o ódio ao próprio nascimento, "Odiei minha mãe, porque nasci de cor". O incômodo que Anjo Negro causa no público, toda a vez que é re-encenado, é geral. Nem brancos nem negros gostam de "tratar disso" e os negros politizados (movimentos negros) não gostam de "tratar disso dessa forma". Que forma? Sem piedade nem hipocrisia. Em Anjo negro não apenas os brancos odeiam os negros, é um Grande Negro que odeia a si próprio e a todos os negros da face da terra. Eis o homem danado e solitário, de que falava Franz Fanon nos anos 1950

MALDITA MORTE

BENDITA LITERATURA
Depois de quase meio século de leituras, o que posso esperar de um livro? No mínimo que "o inesperado faça uma surpresa". E caso você seja daqueles que percebe em tal expectativa doses de ingenuidade, fico aqui a lamentar o seu equívoco.
O inesperado tanto pode estar ao lado como distante, muito distante. Encontrá-lo vai depender do talento dos editores que no mais das vezes optam pela comodidade da compra dos best-sellers d’além mar. Exemplo: perceberam que de uns tempos pra cá o fato de escritor tal ser português já é o bastante para merecer status de "grande?" Mas aqui na minha biblioteca essa banda não toca, mas não toca mesmo! E pelo visto também não toca pros lados da Bertrand Brasil, editora que corre na contra-mão da mesmice e com conhecimento de causa, ela publica Camilo José Cela, voltou seu olhar para a Espanha e de lá trouxe o surpreendente "Maldita Morte", de Fernando Royuela .
O inesperado em Maldita Morte surge na primeira frase, não há o menor desperdício nesse livro indispensável àqueles que ainda acreditam na literatura de qualidade e na necessidade que o homem tem de se emocionar. Parece exagero? Calma, tem mais, muito mais e se muito também aqui não direi é pensando em vocês, futuros leitores do livro, pois não quero privá-los das agradáveis surpresas que me assaltaram durante a leitura. Adianto apenas que o desfecho é obra de gênio. Duvido que vocês, chegando ao ponto final, não se sintam estimulados a recomeçar a leitura dessa grande obra literária.
O anão Gregório (também atende por Goyo, Goyto ou Gregori) é o protagonista, anfitrião e narrador. Ele acaba de receber uma visita em seus derradeiros dias. Goyo divide algumas semelhanças com o Jean-Baptiste Grenouille, desafortunado personagem principal de O Perfume, do alemão Patrick Suskind, aqui ressalto apenas a fascinação pelos perfumes, o fato de serem desprezados pelas respectivas mães e se Grenouille não tem cheiro, Goyo não passa de um anão deformado.
Antes porém de entrarmos na história propriamente dita, permita, caro leitor, breve exposição sobre o que caracteriza uma grande obra literária.
Ela obrigatoriamente precisa ser única, e, no caso, sequer a tradução a despoja dessa característica, outro aspecto é a capacidade de permitir um número incalculável de leituras, o que no entender de Umberto Eco a torna "aberta".
Dito isso voltemos ao anão Gregório que cresceu (aqui mera força de expressão) vítima da maldade, do escárnio e da brutalidade, inclusive de seu irmão, Tranquilino, enquanto este viveu, "Um trem de carga levou-lhe pela frente a primogenitura". Sua mãe acumulava funções em nome da sobrevivência e uma delas era a de prostituta. Como desgraça pouca é bobagem e provando que até o amor materno guarda lá suas limitações, Gregório acaba vendido ao dono de um circo que cumpria temporada na cidade. É justamente no circo que o anão gasta sua juventude expondo a bizarrice de sua condição em troca da mera garantia de sobrevivência. O circo também pode ser encarado como a metáfora da alienação que emana do capitalismo revelando o labirinto sombrio da sociedade, cada vez mais, de consumo.
Maldita Morte é o que se pode considerar um romance pós-moderno onde as fronteiras da ficção e História ( a história recente da Espanha) são apagadas em nome de uma evolução ou superação do alcance da linguagem. Parece simples? Podem crer, não é. É necessário que de tal amálgama resulte uma totalidade forte e sensível o bastante, a ponto de ensejar a reflexão do leitor e que a união dialética entre o que se passa no seu âmago e o que reside fora do homem, não seja desprezada. Para tanto Fernando Royuela convocou um exército de personagens incomuns, complexos, capazes de desfiar humor e drama na medida exata. Caso me fosse perguntado sobre o objeto do romance não teria a menor dúvida em apontar a vida e sua mais talentosa coadjuvante, a liberdade.
Maldita Morte é um romance desprovido de amor, o máximo que se pode identificar seria a sua intenção, no mais, eflúvios do desejo carnal e piedade. Sendo assim, podemos então identificar uma trama sombria? Ainda não, as doses de crueldade e contradições aproximam o enredo de uma realidade bem mais cínica e que, mesmo assim, teimamos em não considerá-la sombria.
Gregório está longe de ser ou parecer um herói, o máximo que consegue é granjear a comiseração do leitor, só do leitor porque ao longo da trama não lhe é destinada a menor migalha de amor ou mesmo solidariedade. Quando algo parecido com essa dependência recíproca aparece, não é nada mais que uma simples troca de favores onde o mais frágil sempre acaba perdendo.
Ciente de sua precariedade e de seus limites, Gregório não precisa determinar o sentido de sua vida, a seu ver ele já está traçado, no entanto, embora apenas verbalmente, o anão tenta ser um homem livre e faz do cinismo sua arma mortal.
Com ele na bagagem chega a Madri nos estertores do regime franquista e logo consegue a proteção de um chefe de gang de mendigos em troca da delação de comunistas. E é justamente investido na função de espião que Goyo encontrará aquela que lhe abrirá as portas da redenção, ou da liberdade como preferirem.
O anão é um personagem dos mais complexos e suas ações, nunca desprovidas de uma ambigüidade e de uma lógica particular, provocam no leitor reações de amor e repulsa como a lembrar que no íntimo, bem lá no fundo, somos todos quase iguais, embora alguns esbanjem talento e criatividade.
Para concluir,caro leitor, Maldita Morte é um dos melhores, senão o melhor, lançamento do ano e fiquemos na expectativa de que a Bertrand não tarde em lançar os títulos de Royuela ainda inéditos por essas plagas.
Como Gregório usa e abusa do cinismo para se defender, convém lembrar que estamos na época mais cínica do ano e na dúvida do que presentear, o faça com um exemplar desse livro que também vale por uma aula de teoria literária. Em se tratando de função poética da linguagem há muito que se aprender.
Confesso que foi difícil, mas se consegui me controlar até aqui não seria agora que revelaria o magistral desenlace dessa história que não tem fim.
Maldita Morte. Bendita Literatura!


TRECHO
"Ao longo da minha vida conheci uma infinidade de filhos-da-puta e a nenhum desejei uma morte ruim. Com você não vou fazer uma exceção. O ser humano perdura pelo mundo sem se dar conta da tragédia que o aguarda. Uns inventam deuses para remediar a angústia, outros, ao contrário, atendem ao imediatismo do prazer para afugentar o inevitável, mas todos no final são medidos pela rigorosa igualdade da extinção. Eu já estava advertido do fim, mas jamais pensei que fosse acontecer dessa maneira.
Sei a que veio, mas não importa. Nunca até agora tinha me enfrentado com a certeza de deixar de existir, e por isso sua presença, antes de me atemorizar, deprecia-me. Agora compreendo que minha existência tenha estado encaminhada desde o princípio para nosso encontro; que meus passos estivessem condenados até este instante, que não me fosse possível escapar ao meu destino por mais que pretendesse absurdamente, que ninguém, nem sequer os entes queridos, jamais irão chorar minha perda. Sei que você veio para se regozijar com o espetáculo de minha morte, constatei-o na ferrugem dos seus olhos, no limo de sua curiosidade, mas já não temo a inexistência."


TRECHO
"Merda de vida", exclamou o ex-presidiário quando terminou com o prato, "uns buscando um amo a quem servir sem pensar e outros em busca da liberdade para poder pensar e não servir". Aquelas palavras tiveram o efeito de sacudir minha inteligência como um choque de honradez e por elas me apercebi de que na espécie humana, embora totalmente inútil, podia haver também um fio de grandeza que transcendia a mera subsistência cotidiana; um desejo impossível por encontrar a localização da justiça e atém mesmo por praticá-la, uma vontade não cultivada de socorrer os semelhantes sob o lema de igualdade e fraternidade, que em virtude de complexos passes de mágica não desaguavam em proveito próprio. Acaba de descobrir o franciscanismo laico dos marxistas, um pensamento belo e impossível que logo haveria de mudar novamente o curso de minha existência e impulsioná-la, como se ainda fosse possível, pelos terrenos da demagogia, da farsa e do interesse."

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

MINÚSCULOS ASSASSINATOS E ALGUNS COPOS DE LEITE

MINÚSCULOS ASSASSINATOS E ALGUNS COPOS DE LEITE
Parece mentira, mas não é difícil encontrar quem coloque a literatura na estante das coisas sublimes. Daí para definir que só pode merecer o título de escritor aquele ser que escreve nas madrugadas em companhia de álcool e fumo, é um passo; ou um parágrafo. O tal escritor tem que, acima de tudo, demonstrar que sofre, se acrescentar humor em seu texto não merecerá crédito. Será mais um metido a engraçadinho. E literatura, segundo a crescente horda que ainda pensa desse modo, não é cenário para humor. Pois bem, diante disso não é de espantar o preconceito com escritores oriundos dos blogs, afinal de contas esse pessoal costuma esbanjar bom humor.
Também não vou negar que, fruto dos blogs ou não, 99% do que é publicado não vale nada.
Dito isso vamos ao que de fato interessa, o livro de Fal Azevedo - minúsculos assassinatos e alguns copos de leite - convém lembrar que a autora mantém um dos mais visitados blogs. Como diria minha filha, preconceituoso leitor, “nada a ver.” Nada a ver no que diz respeito a ser bom ou não, mas tudo a ver no que concerne à prática da escrita. Não importa onde “neguinho” pratique, se no blog, no papel, ou na areia do mar,mas preconceito está sempre na ordem do dia e narizes se torcerão ao saber que uma grande editora, a Rocco,apostou no talento da Fal. Ficha catalográfica:indicação editorial e preparação de originais Anna Buarque. Não sei se a Rocco quis lavar as mãos transferindo a responsabilidade ou se foi tamanha a certeza na qualidade que levou Anna a assumir essa aposta. Seja lá o que isso signifique parabéns ao olho “mágico” de Anna Buarque.
É isso mesmo, o livro é surpreendente, de fácil leitura, sem que isso signifique superficialidade, muito pelo contrário, o conteúdo é corrosivo, e pasme, você novamente preconceituoso leitor, conduz à reflexão. Esse é um dos tópicos a se avaliar a boa literatura, se conduz ou não à reflexão.
Alma, 44 anos, artista plástica, é a narradora de minúsculos assassinatos e alguns copos de leite; esbanja sensibilidade e humor para tratar, acima de tudo, da morte. A morte além de uma presença; uma tentação. E essa relação da palavra com a morte é um dos aspectos mais valiosos nesse livro de Fal Azevedo. Alma perde a irmã, o pai,o padrasto, a filha, porém mais importante e significativo que a morte é o período seguinte, aquele que nos faz ansiar por uma volta no tempo. Ouça Alma, paciente leitor: “Quando minha filha nasceu , eu não gostava dela. Eu tinha 32 anos e não gostava de ninguém. Ela era feia e enrugada e chorava. Deus, como ela chorava. Eu não sabia o que fazer com ela nem como fazê-la parar de chorar. Eu não sabia como amá-la. Eu não a queria no meu colo.
Filha enterrada,novamente Alma com a palavra: “Se eu fui uma boa mãe? Eu fui a mãe que pude ser, que soube ser, não a que ela merecia, como todas c as mães que conheço,quer elas admitam ou não.Não fiz o suficiente.Nunca. Eu poderia tê-la beijado mais,sido mais paciente, acordado mais cedo, lido mais histórias e brincado mais de casinha. Eu deveria ter sorrido mais e dado mais colo, ao invés de ter as minhas ressacas mal-humoradas todas as manhãs. Era minha obrigação fazer daquela menina uma menina feliz,Era minha obrigação fazer seu mundo mais seguro. E eu falhei.”
O que nos resta após um sepultamento? No mais das vezes, a culpa.
Morte e culpa, convenhamos, não são ingredientes dos mais festivos. Não estivessem sob o talento de Fal Azevedo o produto na certa traria o perfume da amargura.
Alma é torturada pelas lembranças e a dualidade romanticonaturalista se faz notar ante as reflexões da narradora que deixa transparecer estar ciente de que a visão do ser humano há de ser sempre uma visão da crise. Sabe também que tanto causa como efeito de todas as tragédias dependem da ação do homem. E a lâmina dessa certeza fustiga Alma do inicio ao fim de minúsculos assassinatos e alguns copos de leite.
A obra de Fal Azevedo permite refletir sobre variado conjunto de temas, estes vão do literário até o político;da valorização sensível e critica das coisas de um modo geral até uma consciência delicada e complexa a respeito da condição humana, constantemente a mercê da paixão.
Densa, bem humorada, tensa e sombria, sem que isso signifique depressiva, a narrativa de Fal Azevedo. A leitura de minúsculos assassinatos e alguns copos de leite é um passeio em noite de lua cheia com alguns relâmpagos, como os que seguem, onde pensamento e prosa se unem e beiram o aforismo.
“Meu pai se sentia tão desprotegido quanto um lobo sozinho. Freud teria adorado a família toda, isso sim.”
“Vi o bebê no berçário, tive uma crise de choro, e disse que não queria morar com ela.”
“Chorei até esquecer por que eu chorava.E daí, comecei a chorar de novo.”
“Um dia eu vou fazer sentido.”
“Os bárbaros não queriam destruir Roma, meu Deus do céu. Eles queriam ser romanos. E isso muda tudo.”
Fal ouviu Pound: “sugerir o máximo dizendo o mínimo.”
Impossível o leitor não se deixar invadir pela tristeza, uma tristeza de história em quadrinhos, uma tristeza inevitável, mas que na página seguinte poderá se transformar, não arrisco em alegria, mas em mansidão sem dúvida. A tristeza que Fal apresenta ao leitor não é de assustar, é nossa tristeza do dia a dia, a inevitável, desde que não se trate de um idiota ou quem sabe um débil mental.
Não se percebe o onírico na narrativa de Fal, mas a denúncia, a fantasia, a inquietação, as turbulências advindas do risco de tentar combater as situações comuns do nosso dia a dia. Fal Azevedo afronta o senso comum, se exige o riso, não tolera o riso excessivo nessa nossa interminável morte que é o viver.
É isso, agora vou pesquisar blogs.



Luíz Horácio

O MAIS CRUEL DOS MESES

O MAIS CRUEL DOS MESES
Contrariando Eliot aquele Abril não seria o mais cruel dos meses, embora seus primeiros dias me levassem a acreditar no aedo britânico.
A vida, a minha vida, escorria entre o pessimismo e o tédio de ensolaradas frustrações cariocas.
Mas estava marcado para o dia 17 em Porto Alegre o lançamento de meu livro e ao sair do Rio deixei bilhete para a ex-mulher pedindo-lhe que não se entristecesse caso o avião caísse, pois o que eu tinha feito já estava bom para um tipo pra lá de comum.
Em Março, no entanto, estivera em Porto Alegre proferindo palestra num evento literário e aproveitei para fazer contato com velhos amigos e antigos conhecidos. Entre os últimos, uma mulher. Conhecida sim, pois não lembrava sequer seu sobrenome. Foi a última pessoa que contatei, um prosaico telefonema, já no aeroporto minutos antes do embarque de retorno ao Rio.
Disse-lhe que no mês seguinte retornaria a Porto Alegre para o tal lançamento. A conversa foi, como sempre fora, plena de alegria e não fosse a última chamada pelo sistema de som do Salgado Filho, na certa se estenderia. Era a tônica entre nós e duas décadas de distanciamento não modificara em nada.
Parti e sequer a lembrança daquela conversa me acompanhou, mas no dia do lançamento na Livraria Cultura consegui falar-lhe ao telefone, manhã cedo, avisando que aquela era a noite do meu livro.
Marcado para as dezenove horas cheguei ao local minutos antes e logo comecei a assinar os exemplares.
Fazia isso quando meus olhos abandonaram a página do livro para se ocuparem da mulher mais elegante daquela noite. De súbito interrompi o que fazia e me dirigi a ela. Um abraço, os convencionais beijinhos e...
-Como você está linda!
-Obrigada (num sorriso inesquecível)
-Você fez plástica?
-Não (repetindo o sorriso)
-Você está casada?
-Separada
-Então, por favor, sente-se ali a minha mesa.
Ela sentou e em meio a uma assinatura e uma foto, trocávamos algumas frases entre goles de vinho.
Seu exemplar, não assinei, disse-lhe que assinaria após o jantar. E assim foi.
Juntos permanecemos até às seis da manhã quando embarquei rumo a uma palestra no interior do Estado.
Ao voltar ela estava a minha espera na Rodoviária. Ali eu já era outra pessoa.
Dias depois retornava ao Rio, não tardou para ela também ir e no derradeiro dia de maio eu chegava a Porto Alegre para vivermos juntos.
O que me intriga nisso tudo diz respeito àqueles segundos vitais onde abandonei a dedicatória que escrevia para ir recebê-la.
O que senti, naqueles breves instantes, ainda hoje busco entender. Um lapso de tempo onde a mudança de minha vida começava a se encaminhar. Ao mesmo tempo em que hoje me sinto irremediavelmente feliz, também percebo que nada disso poderia ter acontecido. E eu me
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Contrariando Eliot aquele Abril não seria o mais cruel dos meses, embora seus primeiros dias me levassem a acreditar no aedo britânico.
A vida, a minha vida, escorria entre o pessimismo e o tédio de ensolaradas frustrações cariocas.
Mas estava marcado para o dia 17 em Porto Alegre o lançamento de meu livro e ao sair do Rio deixei bilhete para a ex-mulher pedindo-lhe que não se entristecesse caso o avião caísse, pois o que eu tinha feito já estava bom para um tipo pra lá de comum.
Em Março, no entanto, estivera em Porto Alegre proferindo palestra num evento literário e aproveitei para fazer contato com velhos amigos e antigos conhecidos. Entre os últimos, uma mulher. Conhecida sim, pois não lembrava sequer seu sobrenome. Foi a última pessoa que contatei, um prosaico telefonema, já no aeroporto minutos antes do embarque de retorno ao Rio.
Disse-lhe que no mês seguinte retornaria a Porto Alegre para o tal lançamento. A conversa foi, como sempre fora, plena de alegria e não fosse a última chamada pelo sistema de som do Salgado Filho, na certa se estenderia. Era a tônica entre nós e duas décadas de distanciamento não modificara em nada.
Parti e sequer a lembrança daquela conversa me acompanhou, mas no dia do lançamento na Livraria Cultura consegui falar-lhe ao telefone, manhã cedo, avisando que aquela era a noite do meu livro.
Marcado para as dezenove horas cheguei ao local minutos antes e logo comecei a assinar os exemplares.
Fazia isso quando meus olhos abandonaram a página do livro para se ocuparem da mulher mais elegante daquela noite. De súbito interrompi o que fazia e me dirigi a ela. Um abraço, os convencionais beijinhos e...
-Como você está linda!
-Obrigada (num sorriso inesquecível)
-Você fez plástica?
-Não (repetindo o sorriso)
-Você está casada?
-Separada
-Então, por favor, sente-se ali a minha mesa.
Ela sentou e em meio a uma assinatura e uma foto, trocávamos algumas frases entre goles de vinho.
Seu exemplar, não assinei, disse-lhe que assinaria após o jantar. E assim foi.
Juntos permanecemos até às seis da manhã quando embarquei rumo a uma palestra no interior do Estado.
Ao voltar ela estava a minha espera na Rodoviária. Ali eu já era outra pessoa.
Dias depois retornava ao Rio, não tardou para ela também ir e no derradeiro dia de maio eu chegava a Porto Alegre para vivermos juntos.
O que me intriga nisso tudo diz respeito àqueles segundos vitais onde abandonei a dedicatória que escrevia para ir recebê-la.
O que senti, naqueles breves instantes, ainda hoje busco entender. Um lapso de tempo onde a mudança de minha vida começava a se encaminhar. Ao mesmo tempo em que hoje me sinto irremediavelmente feliz, também percebo que nada disso poderia ter acontecido. E eu me pergunto; o que seria de mim agora, nesse momento?
Foi ali naquele momento em que a recebi e na troca de olhares e breve diálogo objetivo que tudo se deu. Não, não sei definir o que senti, sei apenas que se tratava de um sentimento único que jamais se repetirá e na falta de talento para buscar definir esse misto de felicidade e medo, me socorro nas suas palavras : "Te adoro meu poeta!
Desde que entrastes na minha vida, uma sensação estranha me percorre, de que não houve início, mas de que sempre foi, hoje tenho uma sensação de estado de suspensão. Dores ao me afastar. Acho até que não é só saudade é que falta um pedaço."
Agora anseio por intermináveis Abris a permitir comemorar o que essa mulher me trouxe, vida.pergunto; o que seria de mim agora, nesse momento?
Foi ali naquele momento em que a recebi e na troca de olhares e breve diálogo objetivo que tudo se deu. Não, não sei definir o que senti, sei apenas que se tratava de um sentimento único que jamais se repetirá e na falta de talento para buscar definir esse misto de felicidade e medo, me socorro nas suas palavras : "Te adoro meu poeta!
Desde que entrastes na minha vida, uma sensação estranha me percorre, de que não houve início, mas de que sempre foi, hoje tenho uma sensação de estado de suspensão. Dores ao me afastar. Acho até que não é só saudade é que falta um pedaço."
Agora anseio por intermináveis Abris a permitir comemorar o que essa mulher me trouxe, vida.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

O MUNDO DO SEXO

O MUNDO DO SEXO

Sei muito bem que pouco importa o que eu ache ou deixe de achar, mas para este aprendiz O mundo do sexo de Henry Miller é um valioso e esclarecedor ensaio sobre vida, liberdade e arte, O quarteto de Alexandria corre por fora cabeça a cabeça.Infelizmente a maioria das análises opta sempre pelo mais fácil, o que está mais a mão e o classifica junto com sua obra como pornográfico. Discordo. Na verdade Miller ainda é lido com as lentes da hipocrisia. Sempre encarei os livros de Miller como um anúncio de liberdade, talvez os veja desse modo por acreditar que não exista bem mais valioso que este. Por pensar assim sei que vou morrer sem entender como grande parte da humanidade se desfaz da propriedade de ser livre, não entendo mesmo! O que vemos então? Casamentos de fachada, profissões sendo abraçadas porque são rentáveis e a hipocrisia se alastrando com eficácia capaz de humilhar o carioca Aedes aegypti.
Importante ressaltar que ao longo da obra de Henry Miller, embora a liberdade sempre como protagonista, o que não falta é movimento, o que não se percebe é repetição. E alguém conhece liberdade sem movimento? Conhece, acomodado leitor? Um pedido antes que eu esqueça: por favor, não compare Henry Miller com Bukowski, este não passa de um arremedo depressivo. A liberdade é muito maior que um porre e suas variantes, a liberdade é irmã gêmea do amor, ou conforme Sartre "uma realidade metafísica, com o sentido de uma realidade trascendental; a realidade que se ama em cada um, é a origem, a salvação. Cada homem deve ser produto da comunidade e de uma realidade livre." Você encontrará essa mesma posição ao longo da obra de Henry Miller. Mas por que o sexo choca tanto? Por que vivemos tempos de transição, saindo de homus cinicus para homus dissimuladus. Nos acostumamos e nos acostumaram a revestir de sublime o tal do amor, mas o que vem a ser esse amor? o amor é quase uma chantagem. Na verdade qualquer bobagem pode se chamar de amor. Ainda estou pra conhecer amor que não reprima. E por ser assim amor não tem graça, o que movimenta é o sexo.
Liberdade também é procurar o amor. Então, por que não procurar amor e sexo? Leia Henry Miller com atenção e perceba o porquê da ausência desse amor nauseante, o amor melequento. Porque isso não existe, é a consciência da liberdade que permite a invenção do amor. Lamentável, leitor, você ainda não tinha pensando nisso? Perdoe, divagações de um velho com três casamentos desfeitos e exercitando algumas fórmulas no afã de inventar o amor.
Viver e vida, o primeiro depende do segundo e para que este se legitime necessita da vontade de querer aproveitá-la, contida no primeiro. Aí se estabelece a confusão. Caso o paciente leitor esteja acompanhado faça a pergunta: o que é vida, o que é viver? No meu entender o exercício da vida implica, também, no exercício do sexo. Calma, não se alvorocem, tudo dentro do razoável, ou melhor, da fartura razoável. Não sei, no entanto quais razões levam a comunidade heterossexual a não conferir a devida importância ao tema, ainda bem que o vasto contingente homossexual não se intimida, não se reprime e faz justiça. Acredito que assim procedam por saberem a distância que separa a vida do viver.Nunca esquecer que a vida furiosa não poupa ninguém. A questão se resume ao modo com que Henry Miller utiliza as palavras dando a algumas um caráter poético, cria assim uma síntese de imbricações entre o som e o significado verbal. Em todas as palavras sobressai a riqueza afetiva. É esse o método que unifica autobiografia e ficção e impede a despersonalização do autor frente a obra, frente as palavras. Desse modo o autor reflete a vida. Henry Miller compreende a realidade da vida, uma totalidade, uma certeza como a liberdade de ser e que privilegie ao mesmo tempo espírito e carne. A liberdade é uma presença incandescente e uma permanente tentação, o sexo se converte na sua metáfora principal. O desejo de liberdade aliado a um desejo criativo se traduz em premonições de amor e razão de viver.
É isso, o homem voltando a ser homem, reconquistando a liberdade, consciente de sua inesgotável capacidade criativa, voltando à inocência.
Entra em cena amor e sexo, ora unidos ora antagonistas, existe bem e mal em ambas possibilidades, a liberdade permite a escolha. Os hipócritas optarão pelo antagonismo e perceberão no sexo a devassidão, a sujeira, aqueles que anseiam por liberdade, inclua nessa turma este aprendiz, entenderão o sexo como motor fundamental da criação.
Custo a entender tanta hostilidade com algo que se pratica nu, onde cada um é o que é, a grife desse encontro, no caso deste aprendiz é o amor, por isso minha homenagem a Henry Miller, o mundo do sexo é o nosso mundo.
O conteúdo autobiográfico lhe concede um de seus aspectos mais destacados: uma fogosa impressão de verdade, mas ao mesmo tempo pode embotar a percepção do leitor, desviando seu olhar do conteúdo lingüístico aos momentos da trajetória pessoal; da obra de arte ao diário repleto de emoções. O mundo do sexo merece uma leitura honesta,livre de filigranas extra-literárias, requer um exame critico rigoroso.
Mas não se entusiasme apressado leitor, Miller não apresenta o sexo distanciado dos problemas, das tristezas, há um preço muito alto a ser pago por todo aquele que acredita na liberdade. Mesmo assim, mesmo na dor existe luz, um relâmpago incorruptível, um luminoso desconcerto, apontando à liberdade. Um sopro do vivido e do que há por viver. Contagiante!
Alguns percebem em Miller um excesso de individualismo, e isso é inegável, mas quem não é individualista quando o tema é amor e sexo? Será que você, surpreendente leitor, consegue o contrário? Caso olhemos como uma incorreção esse individualismo do autor também não seremos tão cínicos e negar que ela nos fascina, porque no nosso íntimo gostaríamos muito que ela nos pertencesse.
Enfim, quase excitado leitor, é tempo de congelar as hipocrisias e bater asas em direção a liberdade. Em qualquer mundo ,a toda hora.
Em tempo:Dezessete deste abril passado, Livraria Cultura, Porto Alegre, lançamento do meu segundo livro, uma mulher, um luminoso desconcerto, Rejane, pegou minha mão e me colocou num sonho onde passamos a inventar amor. Dali em diante, a cada dia venho me sentindo mais livre.Ora aprendo a voar.
Luíz Horácio
Jornalista, escritor, professor de língua portuguesa e literatura, mestrando em Letras.
Autor dos romances Perciliana e o pássaro com alma de cão –ed. Conex e Nenhum pássaro no céu-ed. Fábrica de Leitura


TRECHO
Ao ler meus livros, que são puramente autobiográficos, o leitor deveria ter em mente que escrevo com um pé no passado. Ao contar a história da minha vida, freqüentemente descarei a seqüência cronológica em favor da forma de progressão circular, ou espiral. A seqüência de tempo que relaciona um acontecimento a outro de maneira linear parece-me uma falsa imitação do verdadeiro ritmo da vida. Os fatos e acontecimentos que formam a cadeia de nossa vida são apenas pontos de partida ao longo do caminho da auto-descoberta. Empenhei-me em traçar o desenho interior, seguir o potencial que era constantemente desviado do seu curso, que fazia círculos ao redor de si mesmo, se acalmava durante longos períodos, caía no fundo do poço, ou tentava em vão atingir os picos solitários e desolados. Tentei capturar os momentos quintessenciais em o o que quer que tenha acontecido produziu profundas alterações. O homem que conta a história não é mais aquele que experimentou os acontecimentos narrados. Distorção e deformação são inevitáveis no processo de re - viver a nossa vida. O propósito íntimo de tal desfiguração, obviamente, é captar a verdadeira realidade das coisas e dos acontecimentos.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

PETRÓPOLIS

PETRÓPOLIS DOS PÁSSAROS, DOS JARDINS FLORIDOS E DO BOM HUMOR
Diz o ditado que desgraça não vem sozinha. De uns tempos pra cá resolvi aumentar a máxima: amor também não vem sozinho. Explico. Vivi dezesseis anos no Rio de Janeiro, retornei a Porto Alegre em maio último. Estava lá entre torturantes funks, estimulantes praias, inigualável Flamengo e minhas maravilhosas filhas quando no dia 17/04 vim a Porto Alegre lançar meu segundo romance "Nenhum pássaro no céu". Naquela noite na Livraria Cultura reencontrei uma conhecida de tempos idos, mas não tanto, e nos apaixonamos. E por esse motivo no dia 31 de maio, 8 graus acusava o termômetro do aeroporto Salgado Filho, desembarquei para ficar. Endereço: Bairro Petrópolis, Av. Lajeado, entre Carazinho e Ijui, rua inexplicavelmente de mão dupla e estacionamento permitido. Aqui espelho retrovisor de direita não respeita espelho retrovisor de esquerda.
Na primeira manhã fui conhecer a praça da Encol, repleta de seres humanos e seres caninos. Todos em perfeita harmonia. Por fora corriam e caminhavam, jovens, adultos e velhos, corpos nem sempre em harmonia, nada de mais, cada qual com sua barriga. Pelas árvores, pássaros e mais pássaros.
Logo me apaixonei por Petrópolis. Na nossa cobertura os papagaios, é isso mesmo; papagaios, costumam fazer algazarras matinais, verdadeiros testes para os tímpanos. Ainda bem que antes das 10 horas eles debandam. Mas isso não é nada se comparado ao sabiá solitário que costumava dar início a sua cantoria exatamente às 05:20h, perdoe, isso era antes do horário de verão. Pra nós. Ele, infelizmente, não tomou conhecimento. Para piorar ou melhorar a situação, vai depender do ponto de vista, o bendito cantor em seguida formou um grupo vocal para acompanhá-lo. Madrugada dessas, ainda escuro, identifiquei o próprio e outros sete. Esqueci de dizer que o concerto se dá na árvore em frente a janela de nosso quarto.
Não, amigo leitor, Petrópolis não se resume aos sabiás e papagaios no quesito fauna, além dos cães que encantam a praça da Encol e cujos donos, educadíssimos, não permitem dejetos nas calçadas, temos por aqui, bem-te-vi, coruja,beija-flor, joão de barro,pombo,canário da terra, pardal, rabo de palha, andorinha, gavião, caturrita e, pasme, ecológico leitor,quero-quero. Duvidou? Vá à praça citada por volta das sete da manhã, os encontrará por lá e por vezes no canteiro central da Av. Nilópolis.
A praça da Encol é um caso a parte, dos cães aos quase atletas passando pela turma da bocha , sem esquecer os "cachorreiros" e a garotada da paquera. É dessa turma que da credibilidade que meus seis meses de Encol me permitem, nomeei sindico da praça, exclusivamente para assuntos de ordem social comemorativa, o acadêmico de direito da PUC, Felipe Borba. Dia sim, dia também, entre 17 e 19h você o encontrará com seu indefectível boné na busca de algum motivo para uma nova comemoração. É esse o espírito de Petrópolis. Alguma festa se avizinha. Por falar em praça da Encol, o mapa diz que ela pertence a Bela Vista, mas no último domingo realizei uma enquete com os freqüentadores.Entrevistei 212, 191 residiam em Petrópolis. E vocês sabem, contra a estatística não há argumento.De modo que, arrá., uruu, a Encol é nossa!
É pelas ruas de Petrópolis que costumo realizar minhas corridas, sempre sob o olhar das árvores, nessa época quase todas floridas, aqui o oxigênio tem perfume e o tempo tem sua melodia . Suave,cabe ressaltar.
Petrópolis é diferente dos demais bairros da capital, por isso que foi dito e muito mais, quer saber mais um pouco? Aqui você pode encontrar a qualquer instante, na Encol, no mercado; com nossa cronista maior, a Martha Medeiros. Que outro bairro recebe diariamente o charme, a sensibilidade e a simpatia de Martha?
Viver em Petrópolis é um privilégio, restaurantes de alto nível , os requinte dos pães, dos doces e dos funcionários da Padaria Merco Pan, na Ijuí, os lanches,as conversas e as cervejas nos finais de tarde, as noites ainda sem medo num bairro alegre.
É isso. Petrópolis, meu segundo amor,de onde escrevo meu terceiro romance.Entre os torturantes sabiás.
Aceite meu beijo, meus agradecimentos , e o desejo de que os sabiás passem a cantar um pouquinho mais pra lá.
PS: Mas estacionamento permitido nos dois lados da Lajeado, é sacanagem!
Luíz Horácio
Escritor, autor dos romances Perciliana e o pássaro com alma de cão, ed. Conex e Nenhum pássaro no céu.;ed. Fábrica de Leitura, professor de Literatura, mestrando em Letras.

RESTOS

RESTOS


Sem introdução. Direto ao assunto. Restos, livro de contos de Mário Araújo devia trazer aquelas famosas cintas onde estaria escrito URGENTE. É isso mesmo, atento leitor, se faz urgente a leitura desses vinte contos sobre amizade. Você deve estar desconfiando desse tosco resenhista pois na certa já deve ter lido que os contos tem como tema a solidão e a morte, não é mesmo? Então pergunto: existe amizade mais estreita do que essa entre solidão e morte?
Não seria a morte mera solidão desprovida de movimento? Sendo ou não, encaminho meu desprezo e medo.Mas prometi que não teria introdução e quase quebro a promessa.
Voltemos a Restos, pois. De cara o leitor recebe o conto que empresta título ao livro, um homem acompanha a retirada dos restos mortais de seus familiares pois é preciso abrir espaço para o corpo do pai.
“Pra sair daqui têm que estar somente os ossos”, Marcílio explicou.”
“E quanto tempo leva?”
“Nesse caso, com caixão de madeira, pode levar até três anos pra sumir tudo e os ossos ficarem limpinhos.”
A medida em que Marcílio, o funcionário do cemitério, vai retirando os restos dos parentes, esses vão despertando no homem, no conto ele não tem nome, lembranças . Sobre a avó não fala nada, precisava ficar mais um tempo, dos sapatos, ainda conservados, do tio vem a lembrança da sua teimosia ,e por fim o pedido para não abrir a gaveta que guardava os restos da sua mãe.Já havia espaço suficiente para o cadáver recente. Marcílio conclui seu trabalho carregando sacos com ossos dos dois homens. Entre lembranças, elas costumam ser tristes e num cemitério não tem como evitá-las, o homem sente vontade de urinar. A necessidade prosaica o impede de ver o destino final dos sacos com os ossos.Temática sombria em tom poético, a mesma que escutei vinda do Alvorino, meu pai, relatando a mesma cena quando do remanejamento dos restos de Doralina, minha mãe, e Hildebrando, meu avô. Depois disso é como diz o personagem sem nome do conto: “Abaixei-me e vi, no espelho, que meu rosto era agora uma síntese de elementos que não existiam mais.”
Perdoe, pragmático leitor, caso o exemplo pessoal o desagrade, a culpa é do Mário Araújo que escreve sobre essas cenas do nosso inevitável cotidiano e nos leva a visitar, mesmo que de passagem, nossa rascante solidão. E medo. Sim, medo, ó escapista e espiritualizado leitor.
O conto seguinte Rauziclíni, narra a solidão de uma brasileira desempenhando o papel de faxineira numa cidade americana, trata-se de precisa síntese do desamparo em terra estranha. É o conto frio do livro, o clima da narrativa invade o leitor. E frio não pode ser sinônimo de solidão e morte?
“Ao primeiro passo, atolou o pé no gelo cremoso e macio e, sem entender exatamente por quê, começou a chorar.”
Em Todos riram, quatro amigos vão de Brasília a Goiânia assistir a um jogo da seleção brasileira de futebol. Durante a viagem os temas das conversas variam do futebol às mulheres passando pela imensidão do país, suas peculiaridades lingüísticas e o comentário sobre os nomes dos jogadores do futebol, de Maiconsuel a Richarlyson. Na viagem de volta ao parar em um posto de gasolina, um lugar em meio ao nada, gastam conjecturas na tentativa de descobrir como o velho frentista fazia para ir e vi àquele seu solitário trabalho. “O que eu tenho de idade/ Centopéia tem de perna/ Pois meu mais belo momento/ Amado amadurecimento/Já não é coisa moderna.”
E entre o sono e o cansaço o silêncio desperta oferecendo a solidão num nome de mulher.
Futebol 1, Futebol 2 e Futebol 3, contos de página e meia onde a solidão e a tristeza são sintetizadas de forma seca e precisa, como o olhar de um goleiro em direção da bola que repousa no fundo da sua goleira num misto de desprezo e ironia. São histórias onde o futebol deixa de ser o circo convencional e se transforma no patético manicômio de nossa trágica pátria.
“O choro dos derrotados. Gás lacrimogêneo dilacerando os olhos .”
Importante ressaltar que a matéria prima utilizada por Mário Araújo não é nenhuma novidade, no entanto a maneira como a utiliza, a prosa poética , o ritmo imposto à narrativa, transformam solidão e morte num território quase inexplorado. O autor, conforme Emmanuel Lévinas, sabe que se “a palavra proporciona a matéria do artista”também se faz necessário a excelência no trato desses ingredientes. E nesse quesito
Mário dá uma lição após a outra. Talvez a mais sutil seja, diante da sisudez da temática, a aparente brincadeira com a linguagem além da humanização precisa de seus personagens onde nenhum padece além da normalidade. Na verdade, os contos de Restos podem ser apreendidos como suspiros de uma humanidade cruel e ao mesmo patética.
Crioula apresenta a brisa da morte na figura da anciã que desperta a ira de Margarida, conto antológico que remete à vida de Mané Garrincha e a cantora Elza Soares, triste e primoroso conto.
“A senhora tem setenta e cinco anos, o calçamento da rua, mais de cem, e do envelhecimento de ambos resulta uma situação amplamente desvantajosa para a primeira, que, sozinha, tenta descer a rua onde mora em direção ao banco.”
Na tentativa vã de brincar com a linguagem, os sem talento a ofendem. Temos aí os imitadores de Saramago a inventar longos períodos desprovidos de pontuação às frases iniciadas com minúsculas. O patético sempre é constrangedor. Mas não inclua Mário Araújo nessa laia, ele brinca sério com a linguagem como você poderá confirmar em Ancião ansioso, mais um biscoito fino desse Restos.
“Mas se Jesus prega, prega-se Jesus. E foi assim que deram um jeito nela, quando o sujeito arrastou-a para um ponto entre duas paredes e lhe sapecou uma bela aula de canto, o suco dele no sulco dela.”
A desforra é isso mesmo, vingança. Duas faces da solidão, homem seqüestra, estupra e mata uma jovem. Testemunha o persegue até capturá-lo e fazer justiça com as próprias mãos. A outra face da solidão é a violência perpetrada pelo justiceiro. Nada de novo, mero relato das possibilidades do humano. O trecho ao final desta resenha faz parte desse conto.
Certo ou errado narra uma hora e meia da vida de um jovem que aguarda a abertura da sala de cinema para então poder misturar sua solidão com a escuridão
“A perspectiva de regredir á situação de uma hora atrás me causa grande desalento.”
Atento leitor, permita um puxão de orelhas, carinhoso porém, note que nos contos de Restos não vislumbramos uma solidão estática, há resistência de parte dos envolvidos. O que também não implica em vitória, mas num debater-se constante.
O conto A imagem apresenta a solidão de uma imagem de Jesus que é transferida de uma igreja em ruínas para a casa confortável de um médico que é transformada em santuário com direito a peregrinação. Aqui temos a sutileza na abordagem do tema da religiosidade deixando à mostra que mesmo a espiritualidade exige certa dose de conforto. Triste, leve, verdadeiro, infelizmente viver também é isso; domesticar o cinismo.
“ O próprio Jesus parecia bem feliz de estar ali. Certamente jamais estivera num lugar como aquele, com tamanho conforto cercado de tantas atenções e afeto.”
Quatro cenas de Brasil não precisa de comentário, são elas:Bala, Bola, Bunda, Bíblia, mas não consigo me conter, perdoe paciente leitor: “-Faz tempo que o Pastor Jônatas pastoreia este rebanho?
- Já faz muitos anos. Desde que saiu da cadeia.O Pastor Jônatas cumpriu seis anos por ter matado um homem.”
Oliveira, Fdp!!! é mais um achado do autor, a parcela tragicômica e fantástica de Restos, ou dos restos de uma existência onde um velho vocifera contra sua própria decrepitude.
Um novo conceito é o relato detalhado de um seqüestro e se mais não revelo sobre esse conto é para não atrapalhar o prazer de sua leitura e seu desfecho genial. A solidão combinada a uma mediocridade abastada é capaz de inventar prazeres onde a vida é material de segunda mão.
Viagem 1, Viagem 2, Viagem 3, três contos a combinar morte e futuro, esperança e resignação, solidão e velhice.A doce crueldade de um autor. Não há trégua nos contos de Mário, o leitor está em segundo plano, cabe a ele estabelecer as rotas de fuga ou buscar a companhia de nuvens.
“Marta - esse era seu nome - jamais tivera a oportunidade de ser apresentada a si mesma. Faltara-lhe aquele momento de solidão em que, na ausência de uma vizinhança, trava-se o conhecimento de si.”
Em Solo Mário oferece ao leitor o poder da escolha, se bem que para dar partida à história tão somente, pois sabe ele que o mais importante é sempre o final. Permite que o leitor escolha entre quatro possibilidades de abertura para a história de um músico frente a seus dilemas, onde geralmente não se permite espaço para a existência da morte. Sobretudo da própria morte.
“Há muito tempo que tudo que via de si mesmo eram as mãos. A única parte do corpo que uma pessoa vê todos os dias da sua vida, pensou. Do rosto, apenas as lembranças e um par de fotografias que trouxera na bagagem.”
Palimpsesto é amálgama de ansiedade e solidão de um escritor que envia seu primeiro romance à apreciação de João Ubaldo Ribeiro. Num primeiro contato dá impressão da parte solar de Restos, mas não embarque nessa canoa, desatento leitor. Concentra-se nessas linhas a mais fiel fotografia da nossa miséria existencial, ela que nos transforma em permanentes pedintes além de deixar a mostra aleijões a espera da bengala alheia que abrirá as portas das oportunidades. Com escritores a cena é das mais comuns. Mendigamos textos a nos recomendar, telefonemas a editores elogiando nossos livros e, nesse vai e vem das influências, os talentos evaporam e as bobagens e os tolos bem relacionados infestam as Flips e as Flaps da vida. Por favor, afobado leitor, não me pergunte o que é Flap. Aproveite seu tempo lendo Restos.
“Gosto do meu nome.Mas um nome sozinho não valia muito naquelas circunstâncias.Precisava de sobrenomes, de preferência dois, três, quatro até.Os sobrenomes empurram o nome; por isso, quanto mais, melhor.”
Encerra o livro Corpo, sem ironias e sem gracinhas, aqui fecha-se o caixão. “Ninguém merece deixar esta vida sem seus ritos.”
Afortunado leitor, concluída a leitura de Restos fica um gostinho de quero mais e se você for também um leitor curioso e pretender sair em busca de algo semelhante, não perca seu precioso tempo. Modestamente, vá por mim. Recomece a leitura. Garanto que valerá a pena, não há riscos. Risco é viver , mesmo com todos os atenuantes do consumismo, mesmo evitando pensar e falar sobre velhice, solidão e morte, resta a certeza inquestionável; o nosso horizonte é o chão.




TRECHO
Tirei o pé de cima e me agachei diante daquela pele fustigada.Cheguei tão perto que podia ver os espaços entre as esfoladuras, amostras do terreno tal como fora. A respiração também se alterara, e um assovio agudo se fazia ouvir acompanhando o ar que saía. Bati mais vezes, com a coronha do revólver e em seguida com os próprios punhos, sentindo um certo nojo ao perceber os dentes por trás dos lábios, a cartilagem por trás do nariz.Levantei-me já um pouco cansado, mas continuei desferindo chutes pelo corpo todo, obrigando-o a assumir formas insólitas. Ora parecia um caracol, ora um arco, ora a letra L. Cansei, finalmente, e contemplei a estranha massa orgânica que jazia a meus pés. Não era ninguém que eu conhecesse aquele um deitado no chão, macerado pelos seus próprios fluidos, movendo-se por espasmos. O assassino que eu tanto execrara, que desejara pelo avesso e com quem sonhara acertar contas entre quatro paredes, agora fugia de mim tornando-se outro.
As pálpebras permaneciam teimosamente abertas. E foi justamente aquele olhar congelado e sem brilho que me fez lembrar da moça na segunda foto do jornal. Compreendi então que meu plano estava arruinado, total e definitivamente. William sem escondera para sempre no olhar da sua vítima e agora me empurrava, alma abaixo, um incômodo sentimento de piedade.
O golpe fatal, no entanto, ainda estava por vir. E veio quando, com enorme esforço, ele tentou balbuciar algo.
No primeiro instante, foi como se estivesse acometido por uma constipação de palavras, e nenhum som inteligível saiu da sua boca. Numa segunda tentativa, porém, uma voz frágil escorreu para fora. Não passava CE um guincho rouco, inimaginável algumas horas antes, mas continha o que poderia haver de mais terrível: um pedido de perdão.
Sem ter escolha, aceitei.

O AUTOR
Mário Araújo nasceu em 1963, em Curitiba. Tem contos publicados em jornais literários, em antologias e na internet. Seu livro de estréia A Hora Extrema, recebeu o Prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas, em 2006.

APENAS OS IDIOTAS CONSEGUEM EXPLICAR O AMOR

APENAS OS IDIOTAS CONSEGUEM EXPLICAR O AMOR
para Rejane
Quando ele veio trouxe uma mala velha cheia de livros. Naquele mesmo dia enfiou-a embaixo da nossa cama. Todas as manhãs colocava a mala em cima da cama e ficava a olhar e chorar em meio às páginas dos livros. Um dia tomei coragem e perguntei a razão daquilo e ele respondeu que chorava pelas pessoas tristes que assim eram porque não tinham coragem de chorar. E chorou ainda mais, dia após dia, depois daquele dia.
Quando ele veio, também trouxe consigo uma outra mala, não tão velha, cheia de CDS. Tinha de quase tudo, de jazz a bossa nova passando por MPB, samba e rock. Alguns ele costumava ouvir no carro, mas a maioria escutava em casa quando me mostrava e se entristecia por eu não gostar. Com a música ele não chorava, mas não parava de fazer anotações a cada disco que escutava. Dizia que as músicas acordavam lembranças e que tudo que escrevia resultava dessas recordações, por isso anotava.
Ele gostava de rir, agora eu sei que ele ria para encobrir a tristeza. E ele era triste por tantas coisas, um dia, a garrafa de vinho pela metade, me confessou que tudo o entristecia e que por isso pensava seriamente em se matar. Sei que foi feliz comigo, que foi feliz com o que eu podia lhe dar; não posso almejar mais do que isso. Em primeiro lugar, porque ele não me permitia outras ações, em segundo; porque ele era assim e mais tarde entendi o porquê de ele viver dizendo que as pessoas não mudam. Ele bem que tentava, mas não conseguia mudar.
Uma vez uma amiga o aconselhou a rezar e ele disse que não acreditava em rezas e tampouco em Deus.Como crer em alguém capaz de prometer uma vida eterna à uma criança e logo permitir que ela morra com pouco mais de dois meses de vida.
Anteontem, no começo da noite ele ligou o computador e me chamou.
-Sim.
-Gostaria que você lesse e me desse sua opinião.
Ele tinha acabado de escrever mais um de seus livros. Antes de ler tomamos uma garrafa de vinho.Depois, vim para o computador, ele sentou no sofá e mais uma vez começou a ler o Dom Quixote. Por volta das quatro da manhã terminei de ler o livro. Não sabia o que dizer. Ele dormia no sofá em minha frente, acordei-o.
-Leu?
-Li.
-Está bem escrito?
-Está.
-E da história, você gostou?
-Primeiro quero saber se você gostou? Você gosta das histórias que cria?
-Gostei, gosto.
-Mesmo com tanta dor, tanta morte?
-A morte é o apogeu da dor. Mas dói, escrever me dói tanto, meu amor, me faz sofrer tanto,eu me vingo de mim, eu me vingo... Vivo a me perguntar: será que um dia conseguirei me consertar?, às vezes me canso de mim...queria tanto ser mais útil para aqueles que precisam de mim, principalmente meus filhos. Preciso escrever um livro sem defeitos. E afinal, você gostou?
-Preciso ler de novo.
Mas saiba que essa insatisfação não é sua apenas. Eu poderia fazer muito mais se não fosse tão desorganizada e até certo ponto "irresponsável". Por certo, poderia dar uma condição de estabilidade futura muito melhor a meu filho, uma qualidade e vida melhor a meu pai e mais tranqüilidade a todos que me cercam.
Não seja tão duro com você.
Sofra, porque isso é inevitável, sempre podemos fazer melhor. Sinal de consciência, mas não tanto que aniquile com sua felicidade. Por favor!Por que eu dependo dela.
Seja um pouco mais modesto. Aliás, não. Quem sabe possa escrever o tal livro perfeito, afinal você é você.


-Se você vai precisar ler de novo é sinal que está ruim, um livro bom não precisa de mais de uma leitura para ser entendido.
Levantou e saiu. Fui dormir.
Quando acordei ele estava escrevendo.
-Deixa eu ler de novo?
-Deletei.
-Você está brincando! Tinha umas frases tão bonitas, pena que não anotei.
-Agora é tarde.Estou escrevendo outro.
-Sobre o que é?
-É a história de um homem que tinha dois medos; de amar e de morrer.
Eu sabia que se tratava da história dele. Afinal de contas um homem que se separa cinco vezes é porque tem medo de amar. Se bem que às vezes fico em dúvida. Talvez ele não tenha medo de amar, o que ele faz é assustar com seu jeito de amar.
Lembro do dia em que ele me revelou que se descobrira apaixonado por outra mulher, mas isso não significava que precisasse deixar de me amar. Pedi que explicasse e ele contou que uma antiga colega de faculdade tinha revelado que sempre prestara atenção nele, tinha um interesse especial. Ele estava comigo e me amava, nunca tive dúvida, mas ouvir ele dizer que a ex-colega também lhe despertava interesse, não me fez muito bem. Tentei deixar pra lá, afinal de contas desde o começo de nossa relação me convenci que o que ele mais precisava era de amor e atenção.Nunca vi alguém tão carente e solitário quanto ele. Impressionante! Ele precisava de amor e atenção das pessoas que ele escolhia, não era o amor de quem precisava amá-lo. Coisa de enlouquecer. Não, não foi nem uma nem duas vezes que cheguei a pensar que ele estava ficando louco. Ao mesmo tempo me perguntava como um louco conseguia ser um amante quase perfeito. Louco ou quase louco não importava, eu o queria ao meu lado. Mas eu sofria.
-Querido, vou te amar pra sempre, no que depender de mim essa relação nunca terá fim.
-Deixar de te amar...só se eu enlouquecer.
-Mesmo assim, continuarei a te amar, te amarei feito uma louca.
Ficamos juntos um longo tempo e agora tenho que admitir que foi um erro. A pior escolha que uma mulher pode fazer é essa, viver com um escritor; estão sempre insatisfeitos. A ele tudo incomodava, nunca entendi a facilidade com que chorava, para que serve um escritor, por que não escrevem coisas só para a gente se distrair, por quê? Ele precisava da tristeza, da dor, para escrever.
Quando ele veio me trouxe um medo: que a cada mulher inteligente e culta que conhecesse, seria capaz de amar, afinal de contas tinha me dito que entendia ser amor sinônimo de liberdade. E de vez em quando se punha a falar das ex-mulheres;o que incomodava não eram as lembranças das fartas frustrações de seus relacionamentos e sim a lembrança/saudade dos momentos bons vividos com aquelas mulheres.Por que não as esquecia por completo? É assim, as coisas ruins existem para nos fazer lembrar das coisas boas, eu não suportava, embora ele estivesse aqui, comigo.Sempre muito carinhoso. De tanto sentir medo escrevi um livro de poesia, todas sobre o mesmo tema. Uma é esta.
Acho que é impossível mascarar o medo
...o medo é uma merda...mas
De todos os medos que me castigam
Tem um que é especial
Ele se fantasia
Com as cores da crueldade e da compaixão
É mais triste que o medo da morte
Mais frio que o medo da noite
Ou mais alienante que o sonho da sorte
É o medo louco de não ser ninguém
de virar mendiga
Patética criatura do chão
Onde só fotógrafos sádicos
Conseguem focalizar poesia
Em tamanha degradação
Quando ele veio trouxe um vazio imenso que conseguimos amenizar, tinha dias que ao vê-lo tão triste me dava vontade de queimar aquela mala, parecia que as dores que o castigavam estavam todas ali. E ele fazia questão de renová-las.
Hoje pela manhã ele se foi.
-Por quê?
-Só tenho repetições a lhe oferecer, você merece mais.
-Mas que pretensioso, quem você pensa que é para dizer do que preciso ou deixo de precisar?
-Não sei de mais nada, tenho uma certeza apenas; tudo é muito triste. Em certos dias quase tive certeza do meu amor por você.
-E agora, agora...que dia é hoje? Dia da incerteza? Então quem sabe amanhã você tornará a me amar?
- Não estou brincando. Faz tempo que o amor é só mais um pedaço do meu sofrimento, cansei.
-Porra, mas que merda de amor é esse que opta pela separação?
-Esse é o meu amor, um jeito de amar que me desagrada, mas basta!, apenas os idiotas conseguem explicar o amor.
Hoje pela manhã ele se foi, não levou a mala.
Quando ele voltar...............

Luíz Horácio
Jornalista, professor de Literatura, escritor;autor dos romances “Perciliana e o pássaro com alma de cão”, ed. Conex e “Nenhum pássaro no céu”, ed. Fábrica de Leitura, mestrando em Letras.

A FILHA DO ESCRITOR

A FILHA DO ESCRITOR
Efemérides são fundamentais para o exercício do oportunismo. Não seria diferente com o centenário de Machado de Assis.É impressionante a quantidade de títulos que têm Machado como centro das atenções. Noventa e nove por cento não acrescenta nada ao que já se sabe sobre autor e obra. Chega a ser constrangedor. Da reedição de contos: os melhores, os esquecidos, os não tão bons à velha questão sobre a reputação de Capitu e outras indagações de semelhante relevância, as editoras vão faturando e egos simplórios são inflados. Não vamos nem citar a quantidade de especialistas em Machado que falam do escritor como se tivessem convivido com ele. Chegam a afirmar o que Machado pensava sobre sua cor de pele, o que imaginava que estavam imaginando a seu respeito. De assustar.
Na contra mão desse oportunismo voraz temos A filha do escritor, instigante e original romance do escritor e professor Gustavo Bernardo que merece ser lido e relido não por ser mais um a mencionar Machado de Assis, mas primeiramente por se tratar de raro exemplar fruto da criatividade e arquitetura literária a serviço de uma história interessante ao leitor, da primeira a última frase.Não se trata de força de expressão, é isso mesmo. Raridade é o termo exato. Em A filha do escritor Gustavo Bernardo foge do didatismo soporífero que impingiu ao seu romance anterior, Reviravolta, onde conceitos filosóficos e científicos truncavam o desenrolar da trama. Lúcia, seu romance lançado em 2000 apresenta essa característica. Nele Bernardo recupera a personagem Lúcia, de Lucíola, o romance de José de Alencar. Agora o didatismo também se faz presente, só que dessa vez em perfeita sintonia com a história de Lívia e do suposto dr. Joaquim. Vícios do ofício? Não importa. Em A filha do escritor esse viés pedagógico se torna de suma importância.
A solidão, marcante em Reviravolta, também desempenha papel importante no romance em questão, lá retratada no passeio dos irmãos pela cidade fantasma, aqui potencializada nas descrições do hospital, suas intermináveis paredes brancas, além do isolamento transparente que acomete os pacientes psiquiátricos, no espelho a fazer às vezes de supervisor ao dr.Joaquim, ou anteriormente quando aluno na faculdade de medicina, e ainda o uísque: “uísque demais é como espelho demais”
Vamos a trama. Convém ser breve pois divulgar pistas pode atrapalhar o melhor do melhor de A filha do escritor; o seu desfecho.
Lívia, de beleza irretocável, decide “hospedar-se” numa clínica para doentes mentais em Itaguaí; não está só, leva pela mão seu filho imaginário de seis anos, Luís. Diz ao dr. Joaquim que marcara encontro com seu pai, Machado de Assis, naquele “estabelecimento.” Jovem, Lívia traz ao dr.Joaquim sua beleza perturbadora e a convicção de que seu pai é o famoso escritor Joaquim Maria Machado de Assis, morto há cerca de cem anos.
Ao longo da narrativa Gustavo Bernardo, aqui fica à mostra o professor, vai ministrado aulas sobre 3 livros de Machado de Assis, todos em perfeita sintonia com A filha do escritor. Ressurreição, Dom Casmurro e O Alienista.
Da convivência de Lívia com dr. Joaquim o leitor visualiza o insuportável desvanecimento do ser frente a falta de amor, mas mesmo assim lança mão de meios para tentar a sobrevivência:a memória, a melancolia, a sublimação de supostos afetos perdidos. E Deus? Não seria uma tábua de salvação, a última esperança? Não, em A filha do escritor não resta espaço à outras ficções, aqui o patético sangra.
Embora as coincidências evidentes, o fato de Lívia também ser o nome de personagem no romance Ressurreição, o paralelismo fundamental se dá com O Alienista, quer pelas personagens, dr. Bacamarte e dr.Joaquim, pelas semelhanças entre as casas de saúde, pela loucura e pelo pessimismo presente em ambas as obras. Ao apontar o pessimismo nos referimos à precariedade da condição humana ensejando desse modo uma literatura fruto da angústia de viver. Em Machado e em Gustavo Bernardo com A filha do escritor essa angústia se disfarça, com raro talento, em ironia. Como bem disse Machado em Memórias póstumas de Brás Cubas: “Obra de finado.Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia.” O ceticismo também pode ser um dos significados do pessimismo e aqui, assim como o didatismo citado anteriormente, temos mais um exemplo da coerência e da unidade ao longo da obra de Gustavo Bernardo onde consta o título Literatura e Ceticismo. Desse modo podemos dizer, sem medo do erro, que sua obra está bem amarrada. Cabe observar que em A filha do escritor, o psiquiatra, dr.Joaquim pede a suspensão do nosso juízo para que conheçamos a bela Lívia, e suspender o juízo é navegar rumo ao ceticismo pelas águas da ficção, esse rio sombrio de representações inconscientes.
A filha do escritor é romance raro, de fechar o livro e aplaudir.

Luíz Horácio
Jornalista, professor,mestrando em Letras, e escritor. Autor dos romances “Perciliana e o pássaro com alma de cão” ed. Conex e “Nenhum pássaro no céu.” ed. Fábrica de Leitura.