sexta-feira, 11 de abril de 2008

MÃE

Santa Maria dos Lobos, trinta de janeiro de 1984 rua dezenove de maio n 2053, uma mulher morta acaba de sair daqui.
A mulher é minha mãe e por todos esses vinte e três anos passados eu continuei vendo ela sair desse mesmo lugar, desse mesmo jeito.
Vi minha mãe atrás do vidro do caixão, estava com a fisionomia de sempre, triste. Certas pessoas são tristes por que são tristes, dispensam explicações, por isso nos acostumamos. Embora eu não me acostumasse à sua tristeza, quando se alegrava conseguia ser ainda pior, sabia que não ia durar.
Meu pai mantinha a serenidade comum aos que sabem que viver é encontrar justificativas para viver, minha irmã não viu nossa mãe morta, nosso irmão também não. Eu continuei a ver. Um filho só consegue ver a mãe como pessoa, como mulher, depois que ela lhe dá as costas. Para nunca mais. A lógica da vida era torta para mim que tinha pressa de viver enquanto era jovem.Pouco tempo restava para admirar a vida, o dia, o vento, o silêncio, pai e mãe. Hoje não incluo pessoas em minhas expectativas.Minha dívida maior é com os mortos.
Lembro que às vezes sentava em frente a nossa casa e tentava imaginar minha mãe na cama com meu pai, não conseguia. Era o pensamento mais triste que me atacava, não conseguir imaginar meu pai e minha mãe como homem e mulher que se desejassem. Temia que ela se tornasse mãe de meu pai e que um dia, assim como eu fiz, ele fosse embora, ela era tão perfeita para mim que eu só tinha medo de perder meu pai. Mas desde cedo algo já me incomodava, assim como a palavra esperança me irritava, a palavra perfeição me enojava. Se ao menos minha mãe tivesse um amante, se emprestasse vida a outras pessoas, ter amante é viver duas vezes. Mas não, minha mãe era religiosa, transparecia uma inocência que não me permitia ver a mulher, acho que meu pai também esquecera de ver.
Minha mãe, uma linda mulher que sempre me deixava a impressão de que algo lhe faltava. Aparentava uma serenidade, misto de passividade com resignação que me incomodava, simplificava por demais a vida. E como disse o poeta profeta, “se intenso ou a vida te há de cobrar.” Minha mãe era um jardim florido sufocando um vulcão prestes a implodir. E implodiu. Guardou coisas demais e por isso morreu.Sua vitalidade indecisa não agüentou.
Naquele tempo, quando ela saiu morta pela primeira vez da nossa casa, eu já tinha um filho a quem não saberia amar. Seu pouco tempo de vida não lhe permitiria lembranças da avó.
Lamento o fato de meu filho não guardar lembranças de minha mãe, estiveram juntos poucas vezes e vem daí um pouco desse vácuo em seu olhar, depois viriam outros filhos, irmãos desse mesmo vazio.
O que ela me deu de mais significativo foi com o olhar, de minha parte pouco lhe dei, se os papéis estivessem invertidos ela lembraria de mim apenas porque as mães não aprendem a esquecer.Acreditava nisso até dias atrás quando me dei conta que ela também me deu histórias, muitas histórias.
A primeira vez que ela saiu morta da nossa casa, estava nublado e isso não deixava de ser um bom sinal, por que enterro em dia ensolarado significa que alguém tripudia. Minha mãe entristeceu o dia e dali em diante minha alegria se tornou mais difícil. Casamentos, separações, filhos, o amor não tem nada a ver com alegria e felicidade, amor é uma palavra disfarce.
Eu não queria aquela expressão no rosto morto de minha mãe, ali ela mentia, aparentava paz, ela me enganou e eu não chorei. Contra outros silêncios seus eu lutei, mas contra aquele não havia nada a fazer.
Ela me abraçaria pela última vez em dezembro, morta, não a tocaria. Lembro da roupa que vestia e da medalha de uma santa que ela carregava. Não lembro das pessoas que estavam na nossa casa velando o corpo, recordo apenas de minha indecisão entre ficar mais tempo com minha irmã ou permanecer ao lado do meu pai. Naquele dia ele estava mais velho.
Se não me falha a memória naquele trinta de janeiro caiu uma neblina, minha mãe foi sepultada à tardinha, não guardei detalhes da morte. Mais tarde, ainda naquele mesmo dia, ela estaria entre nós na sala lá de casa.

Ela morreu com cinqüenta anos, a minha idade hoje. Eu, que a fizera avó aos quarenta e seis, mas não daria certo, a neta morreria com dois meses, insistiria e ela foi avó antes dos cinqüenta. Agora chega a minha vez e sinto medo. Naquele dia eu tinha vinte e sete e daí em diante nunca mais deixei de me sentir só. Duas coisas minha mãe me legou, solidão e medo. Da solidão não escaparei jamais, quanto mais gente, mais amigos, mais afetos, mais só eu me sinto. Desconfio, no entanto, que sem eles talvez já tivesse tomado outras providências. Medo, medo de não ser merecedor da vida que ela e meu pai me deram, e, sobretudo um medo desgraçado de morrer e deixar com meus filhos a dor que minha mãe me deixou. Medo, medo de, a meu modo, também encarar a vida com simplicidade e ver forçado meu desembarque. Não, eu não podia estar me comparando com minha mãe, justo eu que não consigo ser útil a quem necessita, justo eu que neguei ajuda a um mendigo com medo da sujeira dele, não eu não podia estar me comparando àquela mulher que levava para nossa casa, para passar dias conosco, sua amiga tetraplégica. Eu olhava para aquelas pernas pequenas e mortas e perdia o sono, ainda hoje sinto o cheiro daquela mulher, eu já era metido à besta, mas tinha medo da cadeira de rodas, evitava tocar inclusive.
Não tenho nenhum objeto de minha mãe, me agradaria muito ter em meus dedos alianças que ela usava. Eu estou sempre olhando para as minhas mãos.
Vivo buscando no meu pai, pedaços de minha mãe e me senti ainda mais solitário, afinal de contas ela deixara tudo numa só pessoa. Não sei se foi bom para ela, para mim todo resumo é trágico. Meu pai formou outra família e talvez para sua atual companheira certas lembranças pesem tanto quanto a presença de minha mãe. Não, eu não pergunto muito sobre minha mãe. O que sei já é o suficiente, gosto e não gosto.Sobre minha mãe só eu posso saber, da mulher, meu pai nunca me falou. Agora já não interessa mais.
Parece mentira, mas entre pais e filhos não chega a vigorar grande intimidade. Recordo de uma tarde em que minha mãe me mostrou uma carta de meu pai ainda seu namorado.Insisti, quase implorei para ver outras. Outro dia, ela respondeu.
Meu pai sempre trabalhou fora enquanto nossa mãe nos educava, a ele eu olhava quando chegava em casa e nos reuníamos à sua volta enquanto tomavam chimarrão e liam o jornal.
Quando ele, por força do trabalho, precisava viajar a casa aumentava de tamanho, se enchia de silêncio, e ao entardecer, nunca gostei desse momento despersonalizado do dia, eu percebia a tristeza de minha mãe no movimento da cozinha. Então, eu ia para a frente de um espelho qualquer e me perguntava por que eu ainda a desobedecia, a incomodava. Para dali a pouco dormir me prometendo não mais incomodar a mulher triste que tanto me protegia.
Foi ela que me ensinou a ler e escrever, mas como me entristecia o seu desapego e dedicação a mim, principalmente.
Nos meus primeiros meses de escola levava meus cadernos numa pasta de plástico que ela fizera em sua máquina de costura, plástico azul e uma aba incolor. Não era nada incomum nos dias chuvosos em que saía de casa desprevenido, encontrá-la na porta da escola com minhas botas de borracha e capa de chuva a minha espera.
O quanto aquilo me entristecia, ninguém podia imaginar. Um filho não deixa de ser o carrasco de sua mãe. Eu me sentia assim. E o que poderia lhe dar em troca? Amor, carinho? E quem disse que criança sabe dar amor e carinho?
Hoje eu tenho certeza; não soube amar minha mãe. Na verdade eu ainda não aprendi a amar. Gastei o tempo tentando aprender a esquecer.Os egoístas não aprendem a amar, agora eu sei, sempre fui um egoísta, mesmo assim naquela noite de trinta de janeiro de mil novecentos e oitenta e quatro ela voltou a casa de onde saíra morta. Ela voltou para me perdoar. Não adiantou, não me perdoei

2 comentários:

laura disse...

Passarei a visitar diariamente, á espera de seu texto.Pungentes" Você é maravilhoso.São privilegiadas as pessoas que convivem com você. Uma última coisa: a dor é o ingrediente fundamental na receita da literatura?
Da sempre sua admiradora
Laura Chiara

BENTANCUR disse...

Luíz Horácio:

comentar este texto exigiria um artigo, tantos são os aspectos (de enorme força expressiva e profunda significação) que ele possui. Resta, assim, a este teu leitor, resumir sua admiração emocionada (que não dispensa a intelectual ante o artista hábil). "Mãe" é um capítulo infernal de beleza e dor. E tê-lo escrito te faz merecedor de todos os perdões.